O olho e a testemunha

Há uma ideia comum de que a personalidade desaparece totalmente após a morte. No entanto, como diz Jacob Boehme: ”quem morre antes de morrer não morrerá quando morrer” – e assim a personalidade se torna testemunha de um processo miraculoso que traz em si a harmonia. Para ela, é como se uma estrela longínqua fosse descoberta: a fonte de sua própria existência! E ela entra em Unidade com essa estrela. Jacob Boehme explica que “sua alma torna-se um olho que percebe”.

Para quem pertence à Escola Espiritual, além do nascimento neste mundo há dois momentos importantes de um ponto de vista superior, cósmico. O primeiro é sua entrada, ou seja, o primeiro contato com a Escola. É o momento em que seu coração é tocado e se abre a esse “algo desconhecido” que é a Gnosis. Trata-se de uma Lei da Luz, e as leis da Luz não variam. É também o momento em que o ser humano diz, com firmeza: ”Sim, é isso! É isso que eu estava buscando há tanto tempo!” É assinar embaixo da verdade que está expressa em um poema extremamente singelo e marcante de Catharose de Petri, extraído de seu livro Sete vozes falam:
Perdido segundo o eu
No deserto sem fim,
Eis-me um eleito
Em meu “nada mais ser”.
A Luz encontrou-me
Nesses lugares dolorosos
E me chama, da aridez,
Até o Rio de Deus!
 
Quando realmente vivenciarmos esse momento excepcional, estaremos existencialmente marcados no campo de vida cósmico. E é lá que uma estrela se põe a brilhar; e é aí que nascemos interiormente.
Nada sabemos a respeito desse campo de vida, como um bebê que nada percebe ainda, inconsciente do mundo que o rodeia. No entanto, nesse campo de vida planetário, uma vida é dada à Luz.
Uma onda auxiliadora plena de amor é liberada a partir desse campo, que é como um conjunto de documentos que registram nossa viagem original – os documentos que nosso microcosmo recebeu quando iniciou sua Grande Viagem.
O segundo momento importante é quando deixamos o horizonte terrestre.
Não é nada impossível que, ao passar pela fronteira, nos sintamos em casa, no nosso país de origem! Esse caso é imensamente feliz, pois nesse momento, inspirados pelos impulsos do Espírito, temos a possibilidade de continuar nosso trabalho como uma nova personalidade transfigurada.
Também pode ser que nem tenhamos percebido a fronteira durante as horinhas que passamos nos divertindo na Terra. Nesse caso, logo na nossa saída, absolutamente nada muda para nós: todas as circunstâncias continuam sendo as mesmas e os problemas também – enfim, todos os valores que cultivávamos na Terra. Se podemos dizer que existe uma situação sem saída, pensamos que é exatamente essa.
Talvez sintamos falta de nossos amigos e familiares nos primeiros tempos, pois podemos estar certos de que as pessoas nascem, vivem e se reencarnam em grupos. Depois de um tempo mais ou menos longo, haveremos de nos reencontrar. Mas, nesse segundo caso, pelo menos uma coisa muda: nada dá certo. Já não conseguimos agir do outro lado da fronteira. Claro, aprendemos a ver tudo de outra maneira, a partir de um processo de efeito espelho e desintegração, mas não há meio de mudar o que quer que seja! Há um tempo de repouso, qualificado de eterno, como a tranquilidade no País do Sono (Lethes). De repente, tudo começa a se dissolver lentamente. Você se lembra de ser uma pessoa ativa, cheia de energia; agora, virou a testemunha daquilo que diz respeito a você mesmo, pessoalmente. Tudo passa desfilando diante de seus olhos e você revive tanto as coisas boas quanto as más e desagradáveis que você impôs às outras pessoas. A justiça é feita.
E a Luz diz: “Assim como instruí a Noé, assim vou instruir você” Essas leis são invariáveis. Pode ser útil nos colocarmos face à face diante de nossa própria realidade.
Ser testemunha
Ser uma testemunha: olhem que bela expressão para dizer o quanto fazemos parte disso. Ser aluno também é uma forma de testemunhar, no sentido de que “fazer parte” significa, nesse caso, estar incluído no Ser original. Podemos dizer até que é a essência do Caminho. O aluno que “faz parte” é incluído na Luz, é testemunha da ação da Luz dentro dele.
Na verdade, a “morte” do aluno acontece mais cedo: ele morre em vida! O processo que ele atravessa é semelhante à “dissolução das vestes” que acontece normalmente depois da morte física. Essa dissolução acontece de acordo com linhas mestras da vida planetária que valem para todos. Mas, no caso do aluno… que diferença!
Ele não precisa observar como seus veículos se dissolvem. Ele vê outra coisa: ele vê como os processos elementares da vida mental, astral e etérica vão se harmonizando. O aquietamento de seu ser interior é causado pelo fato de que tudo vai se extinguindo precocemente – as tempestades inflamadas pelos sentimentos, as forças vitais que atravessam como relâmpagos seu ser aural, reduzindo a poeira seu desejo de paz, o conflito entre seus sentimentos de culpa, suas dúvidas que se alternam com sua pretensa certeza, todas as lutas mentais que ele conhece tão bem, todos os fogos, todas as chamas – enfim, tudo o que exigia suas forças vitais agora reencontra o equilíbrio. O estado de equilíbrio é aquele que exige o mínimo de energia!
Apesar de tudo, o aluno que está focado não perde a fonte de energia que lhe foi concedida. Essa fonte se eleva como um Sol. Ele vivencia a “aproximação dos fogos da Graça” sob a forma de uma nova lucidez (e a palavra “lucidez” vem de Luz!) e também uma certeza interior sempre crescente. Ele se sente poderoso, equilibrado, pronto para iniciar a Obra. Ele se espanta e se pergunta o que será que fez dele um escolhido; o que foi que permitiu a ele ou ela vivenciar essa maravilhosa leveza interior, essa simplicidade, essa quietude.
Fugir do mundo
Um dia, os magistrados fizeram a seguinte pergunta a Jacob Boehme: “Você tem certeza, sapateiro, de que Deus nos escolheu?” Boehme respondeu: “Os eleitos não têm o hábito de vangloriar -se. É um modo de se revelarem na temporalidade das coisas, pois a temporalidade é cheia de dores do parto e perigos. Existe um selamento de Deus que marca a fronte daqueles cujos selos o tempo deslacra. O eleito não é escolhido para um instante, mas sim para milhões de anos e ele nasce no tempo do grande ano da Graça para tornar manifestas as maravilhas que Deus planeja. Desde muito tempo o início e o fim de uma Nova Era, na qual nos encontramos na presente hora, já foram preparados para o gênero humano”.
O buscador sério interessado em biografias de homens e mulheres dedicados a Deus irá encontrar muitos testemunhos desse gênero. Mas vamos falar mais um pouco a respeito de Jacob Boehme. A resposta do sapateiro suscitou muita polêmica e todos começaram a falar ao mesmo tempo. Alguns gritavam que Boehme estaria divulgando uma mensagem muito diferente da registrada nas Santas Escrituras. Outros o trataram como um personagem perigoso e herege. Outros ainda o reprovaram por não rejeitar este mundo nem fugir dele, assim como o haviam feito os santos da história da Igreja. Ao contrário: eles o reprovavam por sair em busca deste mundo e iam contra isso, dizendo: “Sabemos que, se a alma quiser conhecer a Deus, deverá fugir deste mundo!” Boehme, que era combativo, respondeu: “Se a alma pudesse conhecer a Deus sem ter necessidade do mundo, o mundo não teria sido criado para ela. Não devemos fugir do mundo, mas sim lidar com ele!”
Uma voz compreensiva gritou: “Se não fosse assim, como um ser humano poderia irradiar todas as suas propriedades maravilhosas sem encontrar resistência no mundo? A honra e a coragem somente resplandecem porque o mundo se opõe a elas com sua escuridão”.
Balthazar Walter, conhecido por ser cético, estava tomando parte dessa discussão. Ele era um homem infeliz que, inquieto, percorria o mundo inteiro em busca da Verdade. Sua verbosidade provocava medo. E não é que ele acaba encontrando alguém que dá testemunho da Verdade com força e firmeza? Boehme era uma pessoa que havia deixado sua lança sondar e descer tão profundamente que havia encontrado o próprio princípio original da Criação! Walter declarou: “Em nenhum lugar e nunca entre muitos sábios jamais me senti tão gratificado como neste momento. Até hoje eu ignorava que o saber interior podia me deixar tão feliz!”. Quanto a Boehme, que conseguia ver o interior da alma agitada desse peregrino, sentiu grande afeição por ele e lhe respondeu: “A alegria é o que há de mais divino possível para o ser humano. Na verdade, desde que o Novo Homem tenha despertado, sua aparência também é plena de alegria. Assim como o ser humano exterior vê o mundo exterior, o homem renascido vê também, simultaneamente, o mundo divino no qual ele habita. O espírito divino, em sua alegria, apressa -se em conduzir a alma à divina escola de sabedoria onde ela poderá aprender mais do que em todas as escolas do mundo”.
Essa escola não se resume à Escola Espiritual, mas ela coincide bem com ela e engloba todas as verdadeiras escolas. Elas têm um núcleo em comum: o Ser nuclear de Cristo. Nossas almas são instruídas; nós somos testemunhas dessa instrução. A Sabedoria é ligada a nós e somos testemunhas dela. Nossas almas crescem, amadurecem, e somos testemunhas desse processo, sentindo -nos surpresos e maravilhados. Afinal, não é isso o que faz Cristão Rosa-Cruz? Ele não é testemunha desse processo durante os sete dias de sua viagem? Maravilhado, ele observa o processo das núpcias alquímicas e se rejubila! E, quando, ao chegar ao final, pensa que precisa desempenhar no dia seguinte o papel de guardião do portal, ele volta para casa!
Se a alma conseguisse conhecer a Deus sem conhecer o mundo,
então o mundo não teria sido criado para ela
As quarenta questões sobre a alma
Esse mesmo Balthazar Walter fez, em 1620, quarenta questões a Jacob Boehme.
Todas elas diziam respeito à alma. Todas eram formuladas pela razão humana. “De onde a alma provém? Onde ela respira? Como ela chega até o corpo? Quais corpos gloriosos ela vai conhecer?”
Boehme deve ter suspirado, mas respondeu a cada uma das perguntas, pois aquele que questiona tem direito a uma resposta, o que faz com que a revelação seja possível. “Não sabemos mais do que os outros, mas nos foi dado dar-lhe uma resposta, diz Boehme, a fim de receber mais clareza para nossos próprios pensamentos, para a sinceridade de nossa busca e para a aspiração de nosso coração.”
A quinta pergunta de B. Walter era: “A alma se parece com o quê, e como ela se forma?” e a resposta de J. Boehme: “À imagem do galho que cresce de uma árvore e toma a forma da árvore; é como uma criança que é semelhante a sua mãe. Em seu princípio primordial, a alma tem a forma de uma bola ou esfera: exatamente como seu original, ela tem a forma de um olho. E não poderia ser de outra forma, pois não há nada que possa lhe dar outra forma. No entanto ela é dupla como um coração no qual existe a cruz.
Em segundo lugar, no segundo princípio, a alma é um espírito: ela é uma imagem perfeita, assim como o homem exterior também é.
E, em terceiro lugar, no terceiro princípio, ela é um espelho do mundo inteiro, de tudo o que existe no Céu e na Terra: todas as propriedades e todas as criaturas aí estão contidas, pois esse espelho é como o firmamento e as estrelas. Ela é semelhante a uma coroa na qual está inscrito o número do curso da vida do ser humano exterior, assim como o final de sua existência, incluindo toda a felicidade e infelicidade que estão reservadas para ele.” Assim, vemos que a alma é um olho que observa; um espírito que dirige; e um espelho de todas as forças do mundo. É essa vida tríplice que o homem vive. Cada um dos três princípios é um mistério, diz Boehme, ou um arcano, um segredo para os dois outros, e cada um deseja os dois outros: aí está exatamente o objetivo da Criação.
E o Uno Absoluto, o Criador Infinito, a substância celeste deseja esse espelho, pois esse mundo visto em wsua triplicidade tem semelhança absoluta com o Ser de Deus e Sua substância. Não potencialmente, mas na realidade, a divindade é manifesta em uma semelhança terrena, nos diz Boehme. Afinal, é impossível que o grande milagre do arcano, ou o mistério oculto, possa ser aberto no mundo dos anjos, pois ele é completamente interior e provém do Amor.
O que é interior e respira nesse Amor conhece somente a beatitude. Mas, pela forçca do anseio, somente pode irradial o Amor Divino, e, assim, irradiar para os reinos inferiores. Enquanto neste mundo terreno nos quais se misturam amor e cólera, lá o milagre é possível! Lá, um ser humano pode nascer duas vezes!
Boehme prossegue: “E, onde é possível o Duplo Nascimento, é possível haver milagre, pois tudo o que é exterior aspira intensamente a ser interior, busca sua imagem original e deseja a liberdade, deseja ser livre de sua limitação, que é a ignorância dos dois outros.”
Como se Jacob Boehme compreendesse que isso seria muito complexo para entendermos, ele nos explica assim: “Compreederemos que, na natureza, todas as formas aspiram à Luz, pois é desse anseio que provém o óleo (ou seja, a substância) no interior do qual a Luz pode ser conhecida, pois ela procede originariamente da clemência.”
Logo, precisamos primeiro conhecer nossa própria vida, que se situa no centro do fogo, pois a vida se inflama no fogo. E então, em segundo lugar, precisamos nos aprofundar nesse anseio de Amor e no desejo voltado para o Amor, que emana originalmente do Verbo e se expande no mais elevado dos céus, a esfera dos anjos, das almas puras. É a partir daí que o coração de Deus dirige seu desejo em nossa direção – seu grande desejo de nos atrair para seu Mistério.  “Atrair”: é assim que Boehme se expressa.
E, em terceiro lugar, temos de estudar, sondar o “Reino Mágico” desse mundo que também está aceso em nosso interior e nos faz mergulhar com força em seus esplendores, pois esse reino deseja manifestar-se!
Na verdade, o homem é criado, engendrado para revelar esse grande mistério tríplice e para dar à Luz esse prodígio, dar-lhe forma de acordo com a Sabedoria eterna. Foi assim que Jacob Boehme se expressou.
Essas palavras admiráveis não são muito parecidas com as da Rosa-Cruz clássica, a Ordem Rosa-Cruz? É como se, por meio de um modo de olhar e uma sabedoria diferente, fosse concedido a nós dar uma olhada no templo funerário no qual os Irmãos da Rosa-Cruz clássica descobriram o “corpo intacto de Cristão Rosa-Cruz”, enquanto matriz do Novo Homem!
Fortalecidos com a descoberta desse tesouro, nos tornamos principalmente mais pragmáticos. No centro de um mundo fragmentado, vemos bem pouco dessa gloriosa e harmoniosa imagem. Foi o que aconteceu com Boehme, que viveu durante a devastadora Guerra dos Trinta Anos. Além de si mesmo, sua obra e sua integridade foram alvo de repetidos ataques, durante toda a sua vida. No entanto, ele não deixou de direcionar as pessoas para as realidades espirituais e de testemunhas profundas verdades a respeito da existência do Reino, do macro e do microcosmo.
Quanto a nós, devemos nos elevar acima da confusão e de todas as suas desarmonias, respeitanto os três princípios seguintes:
  1. Precisamos apenas observar, isto é, sermos testemunhas do processo.
  2. Há uma consciência que nos dirige, um princípio bem mais seguro e confiável, mais pleno de Amor que nossa consciência pessoal. Essa consciência inclui totalmente nossa consciência individual.
  3. O espelho pode refletir o esplendor da Criação, na medida em que o alquimista que somos, como discípulos do Espírito, deixe que todas as forças entrem em fusão.
Depois de renascermos interiormente, a Escola Espiritual deseja, acima de tudo, nos auxiliar por meio de seu Corpo Vivo. Ela nos atrai magneticamente para seu Mistério. Em seguida e em contrapartida, ela conta totalmente conosco, na medida em que fazemos descer a longa sonda de nossa pesquisa até nosso próprio abismo original. Nesse Ungrund (“o sem-fundo”, o “sem chão”), onde já não vivenciamos como uma pressão angustiada nem o positivo nem o negativo, nem os fogos da graça nem os da oposição. Então, passamos a vê-los como forças formadoras da Criação. Aquele que olha nesse espelho vê o Divino – a fonte das forças eternas que também estão acessas dentro de si mesmo!
Assim, em terceiro lugar, nos aprofundamos em uma idéia nova: a de que esta vida terrestre em particular foi criada para ser inteiramente imersa no prodígio do Reino, tanto interior como exteriormente, tanto nas alturas como nas profundezas, tanto no grando como no pequeno. É que agora já sabemos que esse Reino é tríplice, assim como nossa alma, nosso microcosmo.
Ele é um Olho que está nos observando.
Ele é um Espírito que nos dirige e governa. E é um Espelho de todas as forças do mundo.
Vamos recriar o mundo – nosso mundo – por meio da magia tríplice do Reino. Vamos cumprir esse plano, realizar nossa vida. Não daqui a pouco nem em algum outro lugar. Não. Mas sim na eternidade do Hoje. Sabemos que, lá longe, uma estrela está brilhando tranquilamente e vela por nós. ◊

Pentagrama no 1 / 2017

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