Nosso eu

O número de verão da revista literária holandesa De Gids (O Guia) tinha como tema “o eu”. Esta colaboração de Rebekka de Wit nos tocou pela clareza sutil com a qual ela tratou o tema. Ao ler este artigo, percebemos um aspecto curioso, em nível de sociedade, e ganhamos uma percepção da confusão e dos problemas causados pelo eu

REBEKKA DE WIT
é escritora (1895) e diretora artística
da companhia de teatro De Nieuwe Tijd (O Novo Tempo).
Ela escreve, entre outros, para De Correspondent
e é cronista em Rekto-Verso.
How do you tell a shattered story?
By slowly becoming everyone.
No. By slowly becoming everything.
(Como contar uma história fragmentada?
Transformando-se, pouco a pouco, em cada pessoa.
Não. Transformando-se, pouco a pouco, em cada coisa.)
Extraído de: The ministry of Utmost Hapiness,
(O Ministério da Extrema Felicidade), de Arundhati Roy
 

Há algum tempo, alguém me falou sobre a “sociedade individualizada”. Meu interlocutor nem colocou a expressão entre aspas. Ele não só deixou de usar aspas como também me falou com muita firmeza, como se estivesse explicando o caminho para a estação de trem. (É isso: se a partir dos anos setenta você continuar em linha reta e seguir o processo de secularização, chegará automaticamente à sociedade individualizada). 

Parecia como quando vou à padaria e o padeiro me diz: “Bom final de semana!” E eu respondo: “De nada!”, ou então, “Por favor!” (afinal, o padeiro nunca presta atenção à minha resposta!). Esse tipo de conversa é como um protocolo: a gente só precisa se compreender a partir da entonação – é como uma espécie de música.

Isso fez surgir dentro de mim certa inquietude. Como se essa conversa sobre o individualismo não passasse de um protocolo, também. É o código exato do comportamento que as pessoas devem adotar, com pares de frases e refrões pré-estabelecidos – uma fórmula, como se a “sociedade individualizada” não tivesse maior importância para mim do que o “Bom final de semana!” desejado pelo padeiro. Quero falar a respeito de palavras porque a verdade provavelmente me faria explodir. Mas ela vem tão pouco à tona!

Somente percebi que as conversas que eu jamais havia tido sobre a individualização tinham virado um protocolo quanto ao conteúdo exatamente quando comecei a expressar coisas que manifestamente não faziam parte dessas conversas: coisas que exigiam até certa resistência.

Por mais que inicialmente eu tivesse dificuldade em aceitar isso, desconfio, agora, que essa resistência é uma espécie de sismógrafo que revela, de modo muito mais preciso, que não poderíamos fazer isso por nós mesmos, e nos apegamos tanto a isso! E ainda há tudo aquilo que vai revelando de que maneira nos apegamos.

Este ensaio é uma tentativa de compreender um pouco dessa resistência, com o objetivo de desmascarar as complexidades que vêm junto com esse processo, as impurezas e os mal-entendidos que se referem ao eu na vida – e de deixar tudo bem claro, preto no branco.

Primeiro, a ideia não era pensar que essa resistência fosse intencional, se é que ela pode ser. Era a consequência inesperada de uma reflexão sobre o eu, e eu havia me apegado a ela, em parte indiretamente, há alguns anos.

Essa reflexão parte da ideia de que – sim, pode muito bem ser isso – pode ser que não haja absolutamente nada dentro de nós: nenhuma bússola, nenhuma voz, nenhuma verdade que devamos cavar se quisermos fazer o que é certo. Esse pensamento lança uma dúvida quanto à questão de saber se é essencial a gente descobrir a si mesmo antes de conseguir fazer as escolhas certas, de saber se um conceito do tipo “continuar fiel a si mesmo” existe de verdade.

Nosso eu
Chuva em uma cidade antiga da China. Li Chen. Esta foto ganhou o primeiro prêmio da Open Photography, 2014

Por enquanto, essa reflexão sobre o eu só me levou à solidão – um efeito sobre o qual eu não sei o que os indivíduos limitados poderiam dizer.

Por exemplo: ultimamente, quando uma pessoa me diz que “comer panquecas é a minha cara!”, eu lhe pergunto o que é que panquecas têm a ver com seu eu. Já não sei exatamente o que eu disse depois… Que eu compreendia que ela gostava de comer panquecas, mas que eu achava que era um exagero relacionar isso à sua pessoa e que eu tinha dúvida quanto a saber se ela era alguém.

Tive consciência de que isso soava esquisito, que essas palavras sugeriam que eu achava que ela não tinha tido sucesso na vida, mas eu gostaria de dizer, de fato, que não devemos supor que somos alguém antes de nossa chegada a essa festa. Que o que esse alguém a respeito de quem ela falava bem poderia ser o fruto de nossa conversa, em lugar daquilo que havia vindo antes, ou pelo menos ser, ao mesmo tempo, os dois. Ela não compreendeu nada disso.

Eu também não, pelo menos não precisamente, mas a conversa com ela me parecia ser uma boa entrada nesse assunto, para podermos começar de alguma parte – um ponto de partida em comum.

Ela sugeriu que eu talvez fosse comunista.
Penso que era o jeito de ela querer dizer que me achava militante. Não respondi nada, pois não era realmente uma pergunta. Mas, com esse silêncio, eu me questionei se não estaria me desviando e, se era isso que estava acontecendo, desde quando.
 

Há três anos, no subsolo da Universidade Livre de Amsterdã, durante uma conferência de Antjie Krog [jornalista e escritora sul-africana], lembro-me de ter tido um sentimento de exaltação do tipo todo mundo deveria ouvir isto!

De um jeito bastante sinuoso, Krog tentava explicar como ela tinha sempre mimado sua individualidade, que ela via como resposta para todo tipo de problemas (“Ayn Randt era minha dieta diária!” [Ayn Randt foi uma escritora, dramaturga, roteirista e filósofa norte-americana que desenvolveu o sistema chamado Objetivismo]).

Quando ela se tornou jornalista e testemunhou sessões da Comissão “Verdade e Reconciliação”, nas quais ela viu pessoas se confrontarem durante três anos e em seguida se perdoarem, percebeu que sua “brancura” pouco tinha a ver com a cor de sua pele, mas que, na verdade, residia em um pensamento relacionado ao eu. E foi nesse momento que, conforme ela disse, começou a se questionar.

What good did this I bring to this country? How precious is this I that it should survive, that it should be maintained, that you should create a future for that I? That I didn’t deliver Mandela or Tutu. It didn’t deliver the peaceful transition. It was a we that made this possible.
(O que esse eu trouxe para este país? O que faz esse eu ser tão precioso para sobreviver, ser mantido, para que criem um futuro para esse eu? Esse eu não libertou Mandela ou Tutu [figuras centrais do movimento contra o apartheid na África do Sul]. Ele não liberou a transição pacífica. Foi o nós que tornou isso possível.)

Ela reivindicava o desenvolvimento de um pensamento e de uma ação que deixassem para trás a dicotomia entre o eu e o outro. “Eu queria ver o eu totalmente dividido. Que ele fosse como a chuva”, dizia ela.

“Mas como?” questionava, desesperadamente, a jornalista.
“Mas como?” questionava o público também, desesperadamente.
“Estou totalmente condicionada pelo dualismo ocidental. Estou me debatendo!”, declarou ela.
 

Então vi na minha frente um homem branco sem qualquer sentido de ritmo e me indaguei se o ritmo não seria, por acaso, um batimento cardíaco coletivo e se a ausência de ritmo não significaria a impossibilidade de sentir esse batimento. Eu queria lutar contra essa impossibilidade de sentir e persuadir os outros a fazerem o mesmo (o que até hoje ainda não consegui). De tempos em tempos, faço um questionamento que dá a impressão de que desejo tirar alguma coisa dos outros – panquecas, por exemplo.

Além disso, tentei gravar o que as pessoas (incluindo eu mesma) diziam sobre seu próprio eu, mas era impossível acompanhá-las, pois sempre estamos falando alguma coisa sobre isso.

Além disso, acho difícil aceitar que nos santificamos, mas isso talvez venha da minha falta de imaginação

Quase tudo o que fazemos, relacionamos a nós mesmos. E vice-versa: sobre tudo o que não queremos fazer, podemos dizer: “Isso não é a minha cara”. A última vez que alguém me disse isso, respondi que tinha ouvido falar que “os chineses, ou melhor, não os chineses, mas na China antiga, as pessoas partiam da ideia de que não há um ‘eu profundo, interior’. Alguns filósofos, no entanto, partiam da ideia inversa: decidiram, depois de realizar um tipo de reunião, que era mais prático presumir que não era assim. Fazemos muitas coisas em nossas vidas, com nossos hábitos e outras coisas, temos nossos modos de reagir, mas a última coisa que aceitamos fazer é considerar tudo isso como nosso caráter. A última coisa que gostaríamos de fazer quanto a isso é seguir um curso para aprender a aceitar esse caráter.”

Tudo estava tão calmo depois disso, que alguém poderia dizer que eu havia desligado a música. “Li isso em um livro”, eu disse ainda. Parecia que era uma boa razão para não ser tratado como comunista. No entanto, ela recusou-se a aceitar que fosse possível não haver nada dentro de nós. Pelo menos não como as ostras e as conchas.

A recusa de colocar pontos de interrogação quanto à existência desse “eu profundo, interior” parece a recusa de meu primo quando alguém lhe pede para colocar em dúvida a existência de Deus. É uma recusa que geralmente é considerada muito deplorável e uma prova de estreiteza de espírito.

Mas acho que a comparação é boa. Quer dizer, estou apaixonadamente de acordo com David Foster Wallace quando ele diz (em seu livro É água) que “não adorar” não existe. Wallace sugere em seguida que provavelmente trata-se de adorar a Deus mais do que o dinheiro ou o poder ou a si mesmo, porque nunca teremos o bastante daquilo que adoramos.

Pode ser que a adoração também esteja submetida à primeira lei da termodinâmica, que diz que a energia nunca se perde, que ela é transferida, como acontece quando morremos e ela vai para os vermes.

No caso do eu, a adoração – e, portanto, aquilo que consideramos sagrado – passa de algo exterior para algo profundo em nós mesmos que defendemos com toda a nossa imaginação, toda a nossa linguagem e toda a nossa lógica.

De algum modo, acho difícil aceitar que santificamos nosso eu, mas isso talvez venha de minha falta de imaginação com relação a essa palavra.  Em todo caso, o contrário é verdadeiro: o grau de efetividade que demonstramos em nosso tom quando falamos de nosso eu profundo tem o mesmo grau de factualidade que o utilizado por certas pessoas quando falam de Deus. E não sei quanto tempo a santidade leva para mudar de objeto, mas em 1894 foi publicado em um jornal londrino um artigo intitulado “O que vem a ser o novo hedonismo?”. Um jornalista havia detectado, aparentemente, um novo comportamento de vida que desejava colocar em relevo.

Imagino que alguma coisa começou nesse momento – por volta de 1894. E talvez até mesmo daqui uns cem anos alguém irá escrever um artigo sobre nossa época, dizendo que o autossacrifício era considerado uma espécie de sacrilégio – e por causa disso, como punição, precisávamos fazer terapia. É que em nossos dias, não somente o eu profundo possui um grau de santidade, mas a tarefa que consiste no autodesenvolvimento também é uma missão religiosa. Acreditamos – ou seja, temos a fé – de que a preservação e a cultura de nosso eu manterão nosso mundo em bom estado e que sustentamos o céu concentrando-nos em nós mesmos.

Nosso eu 3

Nosso eu 1

A quantidade de conversas que pude ter com várias pessoas sobre “seus próprios limites” sugere que o eu é um reino soberano cujas fronteiras não podem ser ultrapassadas. Do mesmo modo que Deus era uma abstração diante da qual deveríamos assinar embaixo para evitar que o inferno inteiro explodisse, assim acontece hoje em relação a nosso eu.

E essa abstração à qual devemos responder, no mais profundo de nós, nos faz dizer constantemente coisas como “É a minha cara comer panquecas!”. Quero dizer que, muito mais do que fornecer a prova da existência do eu, esse modo de falar é o resultado do desejo de um eu que dá destaque à missão de ter um ego.
E estamos apenas começando a mistificação nessa área! Uma área que é maior do que o “eu”.

Essa corrupção reside em certo número de coisas: ela está, por exemplo, em um cronista de Trouw que diz adeus a sua crônica e se orgulha de jamais ter usado a palavra “eu”, dizendo que pelo menos ele não era tão narcisístico como a geração mais jovem, que pensa que “vale a pena discutir tudo o que faz”.

Achei essa mensagem simplesmente desconcertante, porque o fato de pretender que existe uma distinção honorífica por ter omitido o “eu” em suas colunas parecia conter tanto “eu” que, por essa última pequena crônica de adeus, ele tinha reduzido a nada todos os seus esforços. Além disso, parece que ele não percebeu que ninguém detecta o narcisismo contando o número de palavras “eu” contidas em um texto. Nesse caso, Rens Kroes e Marcel Proust [respectivamente uma jovem que publica receitas para uma vida saudável e um célebre escritor francês] teriam de ser colocados lado a lado, no canto, de castigo! Realmente, os dois escrevem sob a forma de “eu”, são fascinados pelo efeito causados por madeleines e bolinhos e os dois examinam seus próprios mundos interiores com uma lupa.

“Quanto eu tinha 20 anos, não me sentia muito bem em minha pele. Eu sentia certa opressão e vivia para os outros. Não tomei qualquer responsabilidade com relação a minha própria vida porque não sabia como fazer isso. Eu era muito dependente dos outros que me rodeavam mais de perto. Talvez, para quem me visse de fora, eu tivesse um ar de superfeliz; mas, visto de dentro, eu não era. Então… saí de minha zona de conforto.”.

“Logo que eu percebia um objeto fora de mim, a consciência dessa percepção interpunha-se entre essa coisa e eu e a envolvia com uma fina camada mental que me impedia de manter contato direto com o objeto: ele se volatilizava, por assim dizer, antes que eu tivesse contato com ele, como um corpo aquecido contra o qual se coloca algo úmido jamais toca a umidade porque sempre há uma zona de evaporação entre eles.”.

Kroes e Proust somente estão juntos aqui para tornar preciso que os critérios com os quais as pessoas pensam que conseguem detectar o narcisismo são, na verdade, inutilizáveis, por mais que os cronistas possam, eventualmente, achar simpático saber que Kroes utilizou onze vezes a palavra “eu” e Proust três vezes somente (em seus textos originais).

Penso que Proust foi em direção contrária a seu tempo, colocando seu mundo interior sob uma lupa, e, ao longo de muitos livros, ele se questionou para saber se existia algo semelhante a um eu profundo, quase como em um ato de oposição. Acho que para Kroes, ao contrário, esse eu profundo é um fato estabelecido. Sem os esforços dos marqueteiros da Coca-Cola, Freud e Proust, Kroes provavelmente nunca pensaria em voltar seu olhar para seu mundo interior para em seguida colocar aí um porta-voz.

Notemos que o mundo interior de Kroes é uma reprodução bem fiel do mundo exterior. O que eu acho notável talvez seja a imagem que as duas expressões evocam. Um mundo interior sugere uma casa estreita onde as pessoas podem ouvir a chuva bater nas vidraças. No entanto, não acho que somos estreitos – pelo menos não tão estreitos quanto a expressão mundo interior sugere.

No fundo, há principalmente o sangue, que é muito mais antigo do que nós

Não sei o que devo fazer com isso – com toda essa poluição.
O que fazer se o cronista de Trow orgulha-se de não ter a palavra “eu” em suas crônicas? Ou, o que posso fazer se estou pensando sem dúvida em Rens Kroes, se me sinto tocada pelas acusações contra a geração mais jovem, mas ao mesmo tempo quero me opor aos escritores que começam sua frase por “o mundo está…”? Ou, o que fazer, talvez até nem tanto contra os escritores, mas sim contra o público que confunde “o mundo” ou outras expressões de dimensão planetária com o conteúdo dos escritores e o “eu” com narcisismo? 
 
Não seria o “eu” uma forma de humildade (talvez justificada) ou de dúvida (talvez necessária)? Ou seria talvez uma possibilidade?
E por que motivo, inversamente, uma declaração na qual alguém pensa estar descrevendo “o mundo” dizendo “o mundo é um lugar no qual…” não seria considerada como uma tomada ilegal de poder?
 
No dia 23 de dezembro de 2016, Grunberg escreveu, em uma nota de rodapé, sob o título “Competição”: Saber até que ponto a história da humanidade ilustra a competição é uma necessidade fundamental.
Essa nota deveria dizer algo sobre “o mundo”. Minha opinião é a de que ela diz algo sobre o poder que Grunberg, enquanto homem e escritor deseja ter o poder de reduzir toda a humanidade a propriedades e categorias, com todos os álibis que isso implica. Penso que a história da humanidade é ilustrada por pessoas que ousam fazer esse tipo de afirmação.
 

Parece má ideia eliminar a palavra “eu” – como o cronista de Trow propõe, a fim de tornar o mundo menos narcisístico – em textos nos quais posso imaginar frases como as descritas acima. As tomadas de poder, seja no mundo ou na literatura, são sintomas de narcisismo, e até de um narcisismo tão avançado que já não conseguimos reconhecê-lo como tal.

Além disso, iniciar frases com “A história da humanidade…” geralmente vai contra a imaginação eventual dessa humanidade, o que me parece não ser, em si, uma melhora. Isso pode parecer contraditório: uma ordem para apoiarmos o “eu do papel”, que vem de uma palestra a respeito de uma eventual redefinição do “eu profundo interior” – uma redefinição que, de fato, teria a tendência de aboli-lo.

O modo como falamos sobre nós mesmos passa por comparações e metáforas. No fundo, há principalmente o sangue, que é muito mais antigo do que nós, e que sabe infinitamente melhor do que nós para onde devemos ir. Trata-se, portanto, de uma ilusão. Penso que a forma-eu é um ótimo meio para questionarmos essa ilusão ou para fazermos experiências com ela.

Além disso, a busca da redefinição do eu é uma busca política e não somente terapêutica. O modo como representamos o ego como algo que está profundamente dentro de nós é uma consequência de nossa história geopolítica, e a ideia de que, se dermos espaço suficiente para o indivíduo, tudo irá correr bem, é também a causa de uma infinidade de escolhas políticas: escolhas políticas quanto ao espaço que estamos prestes a abandonar.

A busca de uma redefinição é, acima de tudo, a busca da expansão da representação relativa ao eu: uma representação que é política.
Quando Antje Krog pergunta: What is it about this I that we need to create a future for it? (O que vem a ser esse eu para que precisemos criar um futuro para ele?), essa é uma pergunta política.
Explico: penso que a demanda em relação a essa autoconservação não vem antes da decisão de abrir fronteiras de nosso reino, mas, verdadeiramente, a decisão de não fazer isso somente irá reforçar essas fronteiras.
 

No entanto, acredito que há um “eu” que compartimos com os outros. Nós o carregamos conosco para onde vamos – inclusive em nosso espaço íntimo, como no banheiro e na cama. Nosso eu, que se encontra em alguma parte no espaço-pensamento entre nós, que sempre está conosco, é o eu para quem tentamos responder e para quem supomos que deveríamos dar a melhor versão.

No último livro de Arundhati Roy [escritora e novelista indiana] lemos a frase: I am a gathering (sou uma assembleia). Para mim, essa frase parece ser uma boa maneira de considerar o eu – como uma assembleia. E creio que é preciso ter coragem para adicionar o que quer que seja a essa assembleia. E o que adicionarmos deveria ser, de início, uma imagem.

Ao invés de chamar nosso corpo de “um templo onde vivemos”, deveríamos chamá-lo de “tenda cheia de furos por onde passa toda água que vem do céu”. Toda chuva que cai passa através de nós e depois sai de nós em dado momento. E isso não pode ser de outro modo. É nesse ponto que somos os furos. Por exemplo: durante esta conferência, quando Krog narrava que a teologia de Tutu subentendia que até Deus está “interconectado” e que, portanto, “até Deus se expõe a mudanças”, senti, nesse momento, alguma coisa úmida no canto de meu olho direito (e não era uma lágrima!).

Eu imaginava Deus como um homem nu debaixo da chuva, porque, na teologia de Tutu, ele vivia também em uma tenda furada, e eu percebi que eu jamais havia parado para pensar que Deus nos foi entregue – e não o contrário. E que isso se aplica, provavelmente, a tudo!
Que o “eu” nos seja entregue!
Era daí que vinha essa umidade (e não estava chovendo!). ◊
 

Este artigo foi publicado em De Gids (O Guia), número 4/2017

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Pentagrama no 1 / 2018

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