Livro
Deixe o passado para o passado, não se preocupe com o dia seguinte, viva no presente.
Essas palavras soam bem. Captar a vida conforme ela vai passando, a cada dia, com toda a tranquilidade: aí está uma bela proposta! Mas, sem passado e futuro, o presente não poderia existir. Cada instante é uma fração de tempo. É impossível parar o tempo. A memória também pode ser uma perspectiva futurista.
A vida que levamos determina a lembrança que teremos dela. É essa lembrança que determina, ao mesmo tempo, nossa vida. As duas (vida e lembrança) se mantêm em equilíbrio: uma não pode existir sem a outra. As experiências vividas colorem os acontecimentos futuros e muitas vezes perturbam o presente de modo lamentável. No entanto, elas são necessárias. O ser humano não pode evoluir sem passar por experiências. Ninguém pode sobreviver neste mundo sem o conhecimento adquirido. Sejam doces, intensas ou ardentes, algumas lembranças às vezes são pesadas como chumbo, enquanto outras são leves como pluma.
Às vezes, elas são feitas de concreto sólido. Outras, são mais enganosas. Elas se aninham em nosso cérebro, nós as sentimos em nosso sangue, elas vão determinando quem somos.
Muitas coisas passam pela vida de um ser humano. Não devemos ficar parados indefinidamente pensando no porquê dos fatos, pois o que fazemos com eles é muito mais importante.
Você pode determinar o lugar que uma experiência vai preencher em sua vida para se tornar, eventualmente, uma lembrança durável, que vai crescendo com você sem retardar seus passos. Só assim uma lembrança pode ser conselheira de nossos pensamentos. Nossos pensamentos são nossas forças mais poderosas! São as ferramentas mais poderosas de que dispomos. Realmente: eles direcionam nossas ações e muitas vezes dominam nossos sentimentos. Nosso modo de pensar pode nos tornar maiores do que somos, mas também pode nos tornar menores do que o necessário. Nossos pensamentos também nos tornam vulneráveis. Nós nos apequenamos quando preenchemos nossa mente com pensamentos de ciúme, inveja, cólera, medo – como o medo do desconhecido, do que os outros estão dizendo e pensando de nós, o medo de nós mesmos e do mundo à nossa volta.
É por essa razão que dizemos: é preciso colocar um guardião próximo de nossos pensamentos para fazer que eles parem – principalmente aqueles que nos diminuem e nos tornam insignificantes, que fazem a vida ficar menos bonita. Melhor seria inverter as coisas: vamos abrir as janelas, limpar as vidraças, olhar à nossa volta e vamos contemplar! Então, nossos pensamentos serão grandes, porque pensaremos em todas as possibilidades: as possibilidades que realmente temos, a capacidade de amar e também de despertar nossa autoconfiança. Esse modo de pensar nos faz crescer. Esse modo de pensar abre nossos corações, alimenta nossa alma e nos impulsiona a realizar a ação que fará de nós um ser humano corajoso. É uma abertura que todos nós somos capazes de realizar.
Confiabilidade
Nossos pensamentos têm sua origem principalmente em nossas vivências e nas lembranças que conservamos delas. As lembranças são pouco objetivas, tanto quanto as próprias vivências, que nunca são. Nenhum fato é idêntico para dois observadores diferentes. O que percebemos depende dos fatos que aconteceram naquele dia, do ponto de vista a partir do qual os observamos e vivenciamos, das pessoas com as quais estamos e o lugar de onde viemos – e assim por diante. Registramos um tipo de acontecimento em nossa memória. Em seguida, esta interpreta uma lembrança que será acrescentada ou atenuada e sempre modificada no momento em que acontecerem novos fatos e experiências. O que essas escrituras e revisões implicam no que diz respeito à confiabilidade de nossas lembranças? Nesse caso podemos falar verdadeiramente de confiabilidade? Em diferentes momentos de nossas vidas as lembranças poderiam se contradizer e, no entanto, serem verdadeiras? Essas indagações são essenciais em inúmeras obras de Douwe Draaisma, professor de História e Psicologia. Em seu livro Se não me falha a memória, publicado recentemente, ele utiliza como aforismo esta frase de Maarten Toonder: “Porque o que se passou na infância geralmente é a causa de um incidente que sobreveio na vida adulta”. Vivemos como num presente de sonho e num passado imaginado interligados. Vamos elucidar a natureza de nosso sonho: somos pessoas que sonham ou somos sonhados? Pode parecer que somos pessoas que sonham, pois também damos forma e conteúdo à realidade. Como isso funciona? Isso acontece por intermédio de nosso cérebro, ou de nossa alma, por meio de um programa que acontece em nossas cabeças – nossa mentalidade. Não interpretamos as impressões e os fenômenos sensoriais de modo objetivo, pois a objetividade não existe, não pode existir. Nós os interpretamos de forma criativa. Para fazer isso, começamos por decodificar nossas sensações a fim de conectá-las às referências de nossa mentalidade conservadora, a tudo que entra em sintonia com nosso cérebro e que, por isso mesmo, é passível de ser reconhecido. Em seguida, carregamos nossa vivência cotidiana com o que foi conservado em nossa mente. Chamamos essa reserva, essa criação, de “realidade”. Mas, de fato, trata-se de um presente sonhado. No entanto, há um fato muito bom nisso tudo: quem direciona esse presente virtual somos nós mesmos. Mas, na prática, utilizamos principalmente um grande número de componentes “inconscientes” de nossa mente, ou (o que é menos grave) de nossas tendências e preconceitos. Portanto, um presente virtual não passa de um pretenso presente. Nossa memória pode se tornar o brinquedo de nosso presente fictício! Poderemos carregar ou preencher nossa memória com elementos que vêm de nosso presente virtual. As pessoas deformam suas lembranças à luz de novos acontecimentos. Ainda há a questão de sabermos se podemos confiar na memória. Oliver Sacks, cientista falecido em 2015, disse a esse respeito: “Não há realidade objetiva. Tudo existe em relação a nós mesmos e é colorido pelo presente. É impossível determinar o que realmente se passou.”
Emoção
No ano passado, o cenário mundial viu-se atolado em uma luta inquietante, complexa e, acima de tudo, caótica. O mundo mergulhou em uma agitação que até agora não pode ser acalmada por nada nem por ninguém. Sabemos muito bem como atiçar o fogo, partir para cima dos outros e mentir. Somos fortes em inventar situações e apresentá-las como se fossem reais, com o único objetivo de criar perturbações. Mistificações! Mas já há muito tempo a linha demarcatória entre o verdadeiro o falso é extremamente imprecisa.
Como nenhum acontecimento pode ser vivenciado da mesma maneira por duas pessoas, desde o pós-modernismo todos nos distanciamos do conceito “verdade”. Não há verdade porque cada um de nós tem sua própria verdade! Ou, como dizia o cineasta espanhol Luís Buñuel no início do século 20: “Nossa memória é constantemente invadida pela fantasia e pelo sonho, e porque é tentador acreditarmos na realidade da imaginação, fazemos de nossa mentira a verdade.”
“O pós-modernismo”, diz o filósofo italiano Maurizio Ferraris, “é o novo populismo”. A partir de frases prontas do tipo “do meu ponto de vista” ou “essa é a sua
opinião”, todo mundo sempre tem razão. Os fóruns da Internet vivem disso: a web está cheia de verdades inventadas que nascem e vivem graças às emoções coletivas. O que acontece é isto: as pessoas ouvem ou leem uma história e reagem a ela – seja com uma enxurrada de xingamentos, seja aprovando. Elas dizem: “aconteceu a mesma coisa comigo!” Geralmente, contam sua própria história na sequência, antes mesmo que o primeiro narrador tenha terminado sua narrativa. A experiência compartilhada evoca uma emoção semelhante, um sentimento parecido. Uma lembrança é, portanto, tão caprichosa quanto nossos sentimentos. Pensamos que podemos nos lembrar de um acontecimento, pensamos que podemos descrevê-lo exatamente, mas geralmente nos lembramos somente dos sentimentos.
Colorimos nossas próprias lembranças. Não estocamos um acontecimento sem mais nem menos em nosso cérebro: nós o relembramos por intermédio de um de nossos órgãos sensoriais, como o olfato, o paladar, um sentimento, ou uma melodia, uma imagem.
Isso é o que Marcel Proust descrevia, no início do século passado, em sua obra Em busca do tempo perdido. Todas as lembranças de sua infância na cidadezinha de Combray voltaram à sua memória enquanto ele saboreava um bolinho chamado “madeleine”, embebido num chá floral. O sabor o fez relembrar cenas de sua juventude, a cidadezinha, sua tia-avó Léonie. “Como um piloto que até então mal conseguia seguir adiante, mas que depois se pôs a decolar pouco a pouco, eu me alçava lentamente rumo às alturas silenciosas das lembranças”.
Memória
Será que conseguiremos nos lembrar dos últimos dez anos de modo diferente, com a chegada do smartphone? Desde que ele apareceu, compartilhamos os acontecimentos diretamente, com fotos, vídeos, mensagens. Nesses momentos, não estamos cem por cento presentes nos lugares onde estamos. Quando estamos compartilhando fotos com a família, amigos ou seguidores, ficamos absortos por alguns instantes, já pensando nos comentários que receberemos e fabricamos uma lembrança de algo que ainda está acontecendo. O presente dispara rumo ao futuro ou até se confunde com ele! É assim que passado e futuro se fundem no presente. Que efeito isso traz para nosso desenvolvimento? Como isso modifica nossa experiência?
De acordo com o psiquiatra alemão Manfred Spitzer, vamos esquecer mais rapidamente. Ao utilizarmos telas, afetamos nosso poder de pensar de modo irreversível. Quanto mais utilizamos computadores, mais degeneramos nossa memória. Nosso processo de desenvolvimento irá apresentar falhas. Spitzer chega a falar de uma “demência digital”.
A demência é uma doença do cérebro que transforma radicalmente nosso estado de ser. Então, bem pouco resta do antigo ser humano quando essa doença sobrevém. A própria vida se torna indescritível, incompreensível e inqualificável. Passado e presente se entrelaçam e parece até que muitas vezes o futuro se apresenta cedo demais. O tempo se tornou uma substância que já não tem necessidade de espaço: ele é indivisível, sem cronologia – o dia já não segue a noite e não há um ritmo de causa e efeito. Pensamentos e lembranças já não se encontram e perdem sua importância. Entretanto, enquanto formos conduzidos por nossos pensamentos, eles serão importantes. Tudo é importante! Não no sentido de pensarmos nas coisas que já se passaram, que nos fazem sentir saudade. O remorso é uma emoção bem inútil. Lamentamos as coisas que fizemos e também as que deixamos de fazer. No entanto, o fato de lamentarmos não nos permite reparar nada. Do mesmo modo, o tempo não cura todas as feridas. Mas a melancolia ou a nostalgia, ou o que nos levou a isso. Voltemos aos lugares que nos fizeram sonhar, que nos permitiram ser – aos lugares que nos conduziram ao que somos agora, neste exato momento. Locais físicos, ou lugares com os quais sonhamos podem fazer surgir o reconhecimento de uma sabedoria interior, de uma certeza.
Confiança
Uma criança nasce em uma casa microcósmica, em um pequeno mundo que lhe é próprio, que já traz em si inúmeras lembranças. A criança cresce, é alimentada pelos alimentos que alguém lhe oferece, por seus pais, pelo ambiente ao seu redor. A criança aprende a refletir por si mesma, a tomar suas próprias decisões: ela aprende a viver. Mas o que realmente aprendemos? Por meio de que nós aprendemos? Não podemos dizer que somos nós mesmos que determinamos tudo isso. Mas são experiências que vivemos, que o microcosmo viveu, que são registradas pelas experiências de nossos pais e ancestrais, pelo país em que vivemos – e assim por diante. Se é verdade que tudo existe em relação a nós mesmos e é colorido pelo presente (um presente que sonhamos conscientemente), então o círculo está selado. Então, é possível apreciar em seu justo valor tudo o que se passa e passará. Poderemos encontrar nisso tudo a verdade – e beber dela.
Comprovar que sempre soubemos tudo isso interiormente é algo incrível! É uma sabedoria, uma imensa certeza que ultrapassa toda compreensão.
Nosso modo de viver, o que nos guia em nossa vida, o que queremos ser, o que queremos fazer, todos esses fatores determinam se podemos ser livres. Quaisquer que sejam as experiências que vivemos, com essa confiança poderemos continuar nossa viagem levando a vida que todos os seres humanos precisam realizar e cumprir por si mesmos.
Embora não possamos escolher tudo, apesar de tudo cabe a nós decidirmos o que fazer com isso. Todo ser humano decide a maneira que quer e pode se lembrar de suas experiências, e decide também a realidade para onde essas lembranças podem conduzi-lo. Todo mundo vê a verdade de modo diferente ou vê apenas uma parte dela. Nesse sentido, poderíamos chegar juntos a uma visão total, como se a verdade fosse um quebra-cabeças. Trata-se, talvez, de uma busca para que o ser humano possa alcançar os mistérios do universo e descobrir as respostas a todos os seus questionamentos – Por quê? Quem? De onde? Para onde?
Tudo começa com o anseio, por uma consciência que está buscando, aspirando à unidade e ao verdadeiro conhecimento. O pensamento, então, já não está preso a uma lembrança, mas encontra-se no eterno presente. É isso que dá perspectiva à nossa vida. ◊
Douwe Draaisma (Nijverdal, 1953) estudou Psicologia e
Filosofia na Universidade de
Groningen. Após seus estudos,
ele se encaminhou à Universidade de
Utrecht, onde foi promovido, em 1993,
por Piet Vroon, graças a uma dissertação
sobre o caráter metafórico da linguagem
com a qual pensamos e falamos
sobre a memória. Até o presente momento,
surgiram quatro livros sobre a memória
autobiográfica: Por que a vida passa
mais rapidamente à medida que envelhecemos
(2001), A fábrica de nostalgia (2008),
O livro esquecido (2010) e,
em 2016, Se não me falha a memória
Revista Pentagrama no 2 / 2017