Hansen & Cia

J. ANKER LARSEN

MONÓLOGO INTERIOR

O professor da cidade, Hansen, pouco antes de sua aposentadoria, quando sua busca pela verdadeira vida o fez passar por todo tipo de experiências felizes e infelizes, alcançou por fim a autorrealização, e daí em diante pertence à família dos sem lugar nem fronteira, os habitantes da eternidade.
A seguir, aproveitando de sua aposentadoria, ele um dia montou em sua bicicleta e, na saída da cidade, encontrou-se aproveitando o sol de verão, recostado numa vala seca, sentado entre os trevos da relva macia. Após um momento, foi com bom humor que iniciou um diálogo consigo mesmo, consciente de ser sempre o caipirinha Hansen [como chamava a si mesmo], que não pode se impedir de refletir sobre as coisas a respeito das quais é impossível fazê-lo pela simples razão de que elas pertencem ao domínio da experiência.

Extraído do final do último romance de Anker Larsen: “Hansen”, de 1949.

“Sim, veja você, Hansen, de fato não é justo que não exista nenhuma palavra para exprimir a totalidade da existência. Encontramos certamente muita verdade nesse versículo bem conhecido das Escrituras: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’. E esse Verbo, com efeito, nenhum homem pode exprimir, nem compreender; somente se pode fazer um tipo de representação do Verbo e de sua origem.

Tomemos como exemplo a palavra ‘primavera’. O inverno acaba de terminar e, um belo dia, nos encontramos do lado de fora, na natureza; então sabemos, sentimos – porque vivenciamos com todo nosso ser – algo delicioso, e a palavra se forma por si, libertadora, desde o topo do crânio até a ponta dos artelhos. ‘Primavera’, dizemos então. Não há nenhuma fronteira, nem em nós, nem fora de nós; a primavera é tudo e está em todo lugar.

Então voltamos para casa, para a pequena fazenda – aqui é necessário imaginar que exercemos a profissão de agricultor – e lá descobrimos que a primavera tem dupla função. De um lado nós a absorvemos com todo o nosso ser, mas além disso, há algo de útil do qual devemos nos servir. A chuva e o sol se sucedem e a primavera significa o ato de trabalhar e semear, e ainda mais.

Significa, a seguir, colheita, ganho, e quando o dinheiro já foi levado ao banco, então essa primavera deliciosa é comprimida até virar alguns números num pedaço de papel. E quando um número importante é escrito nesse papel, então dizemos: ‘Foi uma boa primavera’. Essa primavera, portanto, está no mundo ‘deles’, que, no entanto, não pode existir sem o mundo ‘dela’, e que desaparece quando ele perde seu contato com ela.

 E assim que se vai a primavera, se vai também a vida: somente podemos senti-la em todo o seu ser, e ela é eterna. Mas a palavra ‘vida’ pode também significar um pequeno número de anos, especialmente a duração da vida entre o nascimento e a morte de um indivíduo. E isso não é grande coisa, como o sabemos em nossa idade.

Todo ego guarda em si o ponto central da vida

Agora vai parecer absurdo o que vou lhe dizer e você vai achar de pouca importância, mas eu bem que gostaria que você pudesse compreender um pouquinho com o seu pouco entendimento – que, de qualquer forma, jamais poderá compreender o todo. Talvez você ainda se lembre que, quando saí de Zuiderveld e pela primeira vez fui um, pelo tempo de um instante, com a Vontade do Ser eterno, e vi ao mesmo tempo uma imagem que poderíamos interpretar como a realidade, mas que, no entanto, eu sabia ser apenas uma imagem, uma imagem tão parecida com a realidade – tanto quanto a razão humana pudesse apreendê-la – e fui tocado até a eternidade.

Você pode bem replicar e fingir que nossa razão é a mais elevada e a melhor possível e nos leva muito longe no plano da ciência, da técnica, etc… Muito mais longe mesmo que qualquer outra civilização. Mas então eu lhe respondo: contente-se de ser um caipira, Hansen, você nada pode fazer a esse respeito, mas, puxa vida, você não tem direito de se orgulhar.

As pessoas dotadas de inteligência como você, buscam uma causa primeva, o início de todas as coisas, e criam uma metafísica do mundo que dá uma imagem da existência, quer dizer, de ‘seu’ mundo, pois sem este, não haveria nada para vocês. Mas saiba, Hansen, de fato não há causa primeva, jamais houve começo.

A existência é, simplesmente. Mas porque nosso ‘ser’ – assim como ele conhece a si mesmo com seus órgãos, seus nervos, seus prazeres e desprazeres e tudo que entende e vê – começou em algum lugar e terminará também em algum lugar, então sim, deveria mesmo haver uma causa primeva.

Mas preste bastante atenção e baseie-se na imagem do sol central eterno, que não nasce nem morre, que vi lá em Zuiderveld. Esse sol era a imagem do Ser eterno, que não nasce nem morre, mas do qual toda vida irradia. Hansen, isso é de fato viver; eu gostaria de qualificá-lo de substancial, visto que não se trata de uma névoa filosófica abstrata, não, mas de uma substância que não é ou ainda não é o que chamamos de matéria.

Cada ser humano é, em seu interior mais profundo, um filho desse Ser eterno. Ele é de fato um de seus raios de luz, emitido por ele mesmo, para ser completamente autônomo, mas também para ser um com todos os outros nesse amor incontestável, que nada exige, mas somente irradia deles. Na origem, todo ego guarda em si o ponto central da vida e sabe que, em princípio, todos os outros também o possuem – o outro está tão intimamente próximo.

Sentir realmente esse ponto central da vida em si é a mãe de todo amor, mas… também, infelizmente, isso pode se transformar em ódio. Isso acontece assim: quando esses ‘raios de luz’, provenientes de sua origem distante, começam a sentir uma resistência da parte do nada absoluto que nunca pode viver, essa resistência provoca neles a afirmação de si, da qual eles originalmente não necessitavam; o instinto-eu cresce neles, recebendo cada vez mais força, embora eles conservem sempre um estreito laço de parentesco com todos os outros.

No entanto, o que chamo de substância se densifica à medida que se aproxima desse nada frio cadavérico, e então nasce o primeiro sentimento de medo, porque se trata agora da vida. Alguns sentem sempre o calor do amor do lugar de onde provieram, não se deixam seduzir, voltam a tempo e jamais aprenderão a conhecer a morte. No entanto, todos os outros penetram sempre mais longe através das substâncias cada vez mais densas e chegam ao exterior, até as profundezas do mundo material.

Você compreende isso, Hansen?

Mas esse mundo também nasceu da vida do Ser eterno, no entanto o que o caracteriza é o frio e a morte, por isso, tudo o que nasce e morre, tudo o que se manifesta e perece outra vez, degenera até constituir ‘seu’ mundo. O cérebro material degenerado dos homens jamais conheceu o Ser eterno, apesar de que sem o Ser eterno, sem ‘Aquilo’, o mundo dos outros não existiria.

É verdade que em todos os tempos tenha havido pessoas que, de modo inexplicável, tivessem pressentido um saber relativo ao eterno. Elas afirmavam sentir esse ‘algo’ eterno em si mesmas; elas tinham de sua origem uma lembrança mais ou menos vaga, que não havia sido apagada completamente em seu nascimento. E, com isso, Hansen, você deve considerar que o homem é mais que o corpo no qual ele está encerrado por um tempo.

Apesar de todos os esforços, você pode notar que ‘Aquilo’ começa a se retirar de nosso mundo

Bem, essas pessoas veem a verdadeira saúde nessa presença indescritível que sentem em si mesmas, abandonam-se a ela e, assim, já estão no caminho para deixar o poder do ‘nada frio cadavérico’ atrás de si mesmas. São os seres que retornam à sua origem sabendo, portanto, muito sobre a vida, o que não teriam podido saber se não tivessem pertencido a esse nada frio de morte.

Outros, tendo lembranças muito mais atenuadas de sua origem, tentam se agarrar a esse sentimento indefinido, porque pensam que sua libertação aí se encontra. Eles ouvem as palavras dos que se lembram mais claramente e sentem a verdade oculta nessas palavras, mas seu sentimento é vago e tênue e eles tentam estimulá-lo com meios artificiais. Eles fundam especialmente comunidades religiosas e religiões providas de rituais e de doutrinas religiosas rígidas, que a longo termo se tornam mais importantes que o verdadeiro sentimento de vida.

É por isso que as religiões se adensam cada vez mais até sucumbir em ‘seu’ mundo. Em seguida, eles argumentam, perseguem mesmo os outros crentes e fazem-nos morrer, servindo assim o nada frio de morte, embora finjam servir a vida eterna.

Outros ainda veem o engano disso e estão conscientes de que os dogmas não podem ser justos, mas não se apercebem de que originalmente a verdadeira vida estava efetivamente oculta atrás desses dogmas.

Essa é a razão pela qual essas pessoas se agarram a ‘seu’ mundo; porque ele é tangível, elas ‘sabem com certeza’ que ele existe; o intelecto torna-se ‘sua’ divindade e, mediante seu poder, elas são bem-sucedidas na vida. De fato, elas querem o bem, como todo mundo, a maior felicidade possível para todos. Apesar dessa boa-vontade, você pode notar que ‘Aquilo’ começa a se retirar de ‘nosso’ mundo terrestre.

Eu estou falando muito, Hansen? De que felicidade se trata quando nós, seres terrestres, queremos engendrá-la para o maior número possível de seres humanos? Como isso seria uma ajuda no que se refere à felicidade de nossos semelhantes se pudéssemos receber de alguns especialistas mais saber do que o nosso cérebro pode conter?

O pensar, ‘a iluminação’, tornou-se o deus de nossa humanidade, e estamos há tanto tempo ajoelhados diante dela que já não podemos nos por de pé. Como resultado, nosso próprio eu se reforça a ponto de se tornar tão poderoso que já não suporta resistência, e é assim que nos massacramos mutuamente sem a menor piedade.

No entanto, numerosos são os que desejam ainda a maior felicidade possível para a humanidade. Isso ressoa como algo abstrato, Hansen, mas devemos aceitar a ideia de que a intenção é boa. Essa maior felicidade possível será e deverá ser alcançada por ideologias que virão substituir as religiões e que já não terão nenhuma necessidade de indivíduos senão para servir a essas ideologias e afastar os que ousarem pensar de outro modo.

Infelizmente, sim, Hansen, Deus criou o homem à sua imagem, mas estamos a ponto de fazer impiedosamente dessa imagem um objeto utilitário, ou já estamos fazendo isso.

Pelo poder de nossa assim dita boa razão, chegamos a tal ponto que podemos quase em uma fração de segundo destruir toda a vida sobre este planeta. De fato, já não somos mestres de nossa vontade nesse nível; e se deixamos de fazê-lo, isso se deve certamente mais a nosso medo que a nosso amor. Isso significa, portanto, que o nada frio cadavérico teve uma vitória total. Então esse será o fim de nossa ‘civilização’, como já aconteceu com tantas civilizações precedentes.

Desta vez, isso acontecerá verdadeiramente com nosso globo terrestre inteiro. Em algum lugar do Velho Testamento está a história de Sodoma e Gomorra, que deveriam desaparecer. Um homem piedoso, lembrando-se de sua origem e por isso amando seus semelhantes, orou para que Jeová poupasse as duas cidades. Jeová o prometeu com a condição de que fosse possível ali encontrar dez ‘justos’, mas não havia tantos. Dez pessoas justas poderiam ter salvado Sodoma e Gomorra, de quantos justos precisaremos para salvar o planeta Terra? E quanto a esse número, quantos podemos esperar encontrar? Não podemos saber, Hansen, pois trata-se de ‘seu’ mundo, e jamais o compreendemos.

Nós vamos morrer, Hansen, num tempo relativamente curto e o mundo dos outros não nos lamentará nem se lembrará de nós, pois de modo algum fomos grandes homens. Mas mesmo que o tivéssemos sido, isso nada mudaria, pois em nossa época, o ódio recebeu grande poder. Além do mais, isso já foi o caso no passado.

Houve uma vez um pobre homem que tinha tanta bondade, que foi odiado e torturado até a morte na cruz. Por causa de sua riqueza de espírito, esse homem pronunciou as palavras: ‘Perdoai-os, porque não sabem o que fazem’. Ignoro se foram perdoados, mas bem sei que hoje muitos se parecem com ele.

Seja como for, Hansen, só posso estar feliz por dever sair com você ainda por cem anos, ou – para seu grande alívio – por dever morrer em cinco minutos. Creio ao menos que possa ser feliz, pois conheço o Amor que nada deseja, mas que irradia oferecendo-se perfeitamente, como o próprio Ser eterno; porque conheço esse amor como um de seus numerosos egos que sabem que cada um dentre eles detém o ponto central da vida em si mesmo e têm consciência disso, por havê-lo provado tanto em si mesmo como no outro. Esses egos todos o sabem e o saberão ainda mais por toda eternidade, pois não há nenhum fundo na profundeza desse ‘Aquilo’.

Aí está, Hansen, e agora podemos partir.”

E Hansen, o habitante da eternidade, igualmente professor da cidade, montou sua bicicleta e pôs-se em marcha no caminho do campo. Ele parecia rejuvenescido; um homem solitário, que – ligado a tudo que vive – se sentia livre. ◊

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Pentagrama no 1 /2018

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