Podemos atribuir uma identidade a um continente? Talvez, se considerarmos o mito e a particularidade de sua origem. Houve um tempo em que os deuses frequentavam os homens. Na Grécia, Zeus apaixonou-se pela jovem Europa. Ele a levou para o norte, onde fazia cada vez mais frio. A partir de então, os deuses se retiraram para o Olimpo, ou para ainda mais longe. Esse conto segue o desenvolvimento da consciência da Europa: o que antigamente fora o Século de Ouro, pleno de inocência, tornou-se cor de prata; a prata tornou-se bronze, depois ferro, e hoje tornou-se aço temperado. A pergunta que nos fazemos é: Já estamos no caminho de retorno?
Antigamente, a Europa era a nobre jovem inocente filha da mitologia grega sobre quem o infiel Zeus lançara seu olhar. Para seduzi-la, e sob os conselhos do dissimulado Hermes, ele se metamorfoseou em touro, símbolo evidente da força masculina em estado bruto e da sensualidade grosseira – propriedades que mais tarde marcariam principalmente o continente epônimo.
Sentimental e romântica, Europa o permitiu, depois jogou a seus pés uma rosa. Esse quadro é a imagem por excelência da virgindade e da candura feminina, mas também dos espinhos do sofrimento, de uma existência no finito. Com efeito, Zeus a retirara de sua pátria para levá-la a um continente desconhecido e distante. O que testemunha da hospitalidade dessa estranha parte do mundo que a acolhe de braços abertos.
No entanto, ela jamais se sentiu em casa. Para outro grego, o destino trágico do continente europeu já está presente de modo também tocante. Trata-se do continente de Atlântida, desaparecido sob as águas, e ao qual Platão se refere várias vezes. Esse continente abrigava em outros tempos uma civilização poderosa, detentora de imensos poderes mágicos. No entanto, devido aos excessos que o caracterizavam, esse povo naufragou, tendo abusado dos recursos substanciais de seu solo.
Segundo Platão, os europeus seriam os descendentes e herdeiros dessa civilização desaparecida. E aparentemente no final da era atual eles seriam novamente pegos por seu trágico destino. Além disso, segundo o vidente Edgar Cayce, um grande número de “anciãos” atlantes teria encarnado nesse continente, mais precisamente em nossa época, para reviver essa tragédia. Não se trata de dizer que o cidadão mediano desse continente sempre tão próspero encontre algum amparo nessas velhas histórias. Ele vai se orgulhar muito mais pelo fato de que a Grécia é também o país de origem do espírito crítico: um país que pode, além do mais, taxar-se de ser a pátria do sistema eleitor democrático, tão apreciado na Europa. Mais que se identificar com a força visionária do grande filósofo grego Platão, o europeu, quanto a si mesmo, prefere o espírito realista de seu guia e mestre Sócrates, embora não conheça dele nada além do fato de que, após cada resposta dada, ele estivesse pronto a fazer uma nova pergunta difícil.
Nosso ocidental parece ter esquecido também que, além da civilização grega, foi sobretudo a civilização judaica que formou a jovem alma europeia. O povo judeu que, após o êxodo do Egito, devia vagar pelo deserto – primeiro em Canaã, antes de encontrar a terra prometida, embora a hospitalidade da terra que se tornaria a Palestina tivesse sido obtida pela violência. Mais tarde, na Europa, os bárbaros pagãos nem sempre foram cristianizados com doçura.
Hoje, parece que nos esquecemos igualmente de que a civilização europeia encontrou sua inspiração referindo-se àquele que a Bíblia diz não ter “nenhuma pedra onde repousar a cabeça”. Vagando de um lugar a outro, ele não era reconhecido como profeta em sua própria cidade: rejeitado tanto pelos poderosos deste mundo quanto pelos sacerdotes, foi levado à morte em sua santa cidade de Jerusalém. No entanto, a imagem do herói morto prematuramente que ressurge dos mortos sempre existiu no mundo pré-cristão, notadamente na Mesopotâmia e no Egito. Nós o conhecemos como Osíris partido em pedaços, que para os gregos apresentou-se como Dionísio e para os romanos como Mitra.
O europeu mediano nem mesmo conhece suficientemente o fato de que sua civilização está enraizada no Egito antigo. Mas uma mudança progressiva parece estar ocorrendo nesse nível, embora quase despercebida. Porque, nesse meio tempo, sabemos que o cristianismo voltou à sua origem, às iniciações secretas que, seguindo os rastros egípcios durante séculos, foram praticadas no Oriente Médio – embora, como ato redentor, seu propósito fosse estar à disposição de cada um, independentemente de sua origem ou de seu destino.
Apenas uma conversão pessoal poderia aproximar o homem do divino. Essa salvação divina não foi venerada como algo elevado muito distante, além do mundo, mas ao contrário: foi colocada ao alcance do homem. Cristo encarnou neste mundo como o Verbo que se tornou carne, e nisso poderia ser imitado por cada um, de modo autônomo. Mas, durante esse tempo, o mundo tomou por si mesmo um caminho para sua própria autonomia e rapidamente perdeu esse divino de vista. Seria, sobretudo, na alma europeia que esse processo de secularização e de profanação se cumpriria como um desenvolvimento capaz de oferecer oportunidades enormes, mas também de ser uma possibilidade de queda.
O título imperial Sol Invictus foi transferido ao messias cristão
A história europeia conta apenas essa experimentação audaciosa e a realização trágica de seu destino. O ponto de gravidade do desenvolvimento da consciência foi deslocado do oriente para o ocidente e isso tinha relação com o fato de que o cristianismo encontrava aí sua maior propaganda, apesar de para isso ter de negar radicalmente seu plano de fundo de origem judaica, egípcia e helênica. Em oposição aos antigos mistérios que ainda eram ritualistas, legalistas e nacionalistas, o cristianismo do início formava um movimento laico de caráter aberto e fortemente universal. Quando foram se instalar também na Alexandria egípcia, a expectativa dos judeus essênios por um educador messiânico da justiça ultrapassou as fronteiras do nacionalismo.
Um desenvolvimento que foi ainda mais além no pensamento de Paulo, que rompia com a primeira igreja de Jerusalém e foi levado até a Espanha por seu trabalho de missionário. Frequentemente nos esquecemos de que esse novo movimento nada tinha a ver com a igreja católica que veio a se manifestar muito depois. Ele era, ao contrário, multiforme e o que hoje chamamos de “católico” era apenas uma tendência entre muitas.
A igreja gnóstica de Alexandria era diferente, em sua origem, da igreja de Roma ou de Edessa, mas isso não parece ter sido um problema no início. O cristianismo tomava cada vez as cores do meio cultural que atraía para si. Desse modo, antigamente, nos países ocidentais, era praticado um cristianismo druídico cujo culto divino ao sol havia sido perfeitamente adaptado aos novos rituais e aos símbolos.
Porém, o notável a respeito da civilização europeia é que essa abertura e essa tolerância iniciais rapidamente deram lugar à ortodoxia e à caça aos hereges. Em quem desempenhava o papel principal nesse contexto era uma igreja hierárquica rígida, construída segundo o modelo do Estado romano. Para firmar-se no centro do império romano, a jovem igreja cristã tomou os modelos do culto romano. Além disso, o título imperial sol invictus foi transferido para o messias cristão, de modo que seu brilho também irradiou sobre o imperador. Assim, o cristianismo pode deixar as catacumbas para se tornar a religião de estado dominante na Europa. O preço a ser pago por isso seria elevado.
E mais: sob o olhar vigilante do imperador Constantino, o Concílio de Niceia foi determinante para a história eclesiástica que se seguiria. Os concílios posteriores estabeleceram o culto em termos jurídicos, sob a forma de dogmas. Os quatro evangelhos foram canonizados; outros foram proibidos, destruídos ou cuidadosamente ocultos; assim toda uma grande riqueza espiritual se perdeu. Um culto autoritário exterior, imposto por uma autoridade papal invocando uma tradição apostólica substituiu a experiência interior; a letra tornou-se a regra dominante. Os conflitos com os chamados “dissidentes” foram resolvidos com severas condenações ou exclusão.
Assim, houve ainda menos espaço para o livre pensar visionário que se desenvolvia no interior das comunidades religiosas locais. Cristo já não representava a fé num mundo superior, um reino dos céus, proveniente de um grão de mostarda, uma pérola preciosa ou um tesouro no campo, pois a igreja se tornara uniforme em todos os sentidos no mundo inteiro: um império global com Cristo governando os povos e o papa como seu vice na terra.
Embora a mulher seja ainda tida como modelo pelos verdadeiros crentes na igreja original, a religião católica tornou-se uma questão de homens celibatários, e como compensação, a Mãe Maria foi promovida a rainha celeste.
Na Europa medieval, a religião petrificou-se cada vez mais até tornar-se o instrumento de poder pelo qual a massa do povo era oprimida e reduzida a uma obediência servil. A alma europeia permaneceu durante muito tempo esmagada pelo jugo de um pacto feudal estabelecido entre os grandes proprietários terrenos, pertencentes à nobreza e aos altos dignitários espirituais, diante dos quais as pessoas deviam baixar a cabeça e flexionar os joelhos, uma vez que sua autoridade era legitimada “pelo Deus todo poderoso”.
Estranhamente, essa autoridade se elevava de modo inacreditável acima de um mundo que deveria ser finito, porque Ele assim o queria. Para os demais, seria suficiente acreditar que a humanidade seria um dia salva pelo próprio filho de Deus, que seria crucificado para reconciliar o Deus colérico com a humanidade pecadora. A Salvação assim adquirida somente deveria tornar-se acessível ao crente após a morte. A igreja e o estado lutaram juntos para a cristianização e a sujeição dos mundos conquistados, com a cruz numa das mãos e a espada na outra, mediante as cruzadas – principalmente voltadas contra os sarracenos que, após a tomada de Jerusalém, constituíram sérias ameaça para a hegemonia da Europa.
Essas campanhas também foram realizadas contra seus próprios súditos, como os cátaros, quando estes, zelosos, ansiavam por uma reforma interior da fé exterior. Estes últimos, conforme o sabemos, foram exterminados de modo horrível. E, exatamente como aconteceu aos cristãos gnósticos dos séculos precedentes, a história europeia guardou pesado mutismo sobre esse assunto.
O pensamento europeu, pesadamente mutilado, foi outra vez religado ao ideal de vida antigo
A alma da Europa estava ali o tempo todo, mas, aprisionada pelo ensinamento uniforme da igreja, ela se petrificou e se deteriorou cada vez mais. No entanto, o caráter universal do pensamento europeu não estava totalmente perdido. Na Espanha, especialmente, o pensamento judeu e o árabe exerciam ainda grande influência. Avicena [Ibn Sina] e Averroes [Ibn Rushd] são sempre exemplos impressionantes. Não esqueçamos, além do mais, que foram os árabes que nos transmitiram o conhecimento das matemáticas e que colocaram em nossas mãos as traduções de trabalhos dos filósofos gregos e de textos alquímicos.
Diálogos inter-religiosos também aconteceram graças aos templários – sobre eles, agora sabemos que, na verdade, suas preocupações em Jerusalém, iam muito além da luta pelo domínio cristão. Afinal, isso sempre se repete na história europeia quando transcorrem períodos como este. Sempre existe uma poderosa corrente subjacente de desenvolvimentos místicos – o que faz com que a experiência religiosa teime em prevalecer sobre a prática eclesiástica. Nos Países Baixos, ela é representada pelos místicos as regiões próximas ao Reno, tal como Eckhart, Ruisbroec e Hildegarde de Bingen.
Ou na Irlanda e na Inglaterra, pelos monges que desenvolveram um cristianismo céltico próprio, ao qual puderam permanecer fiéis por longo tempo. Havia também os cisterciences e os franciscanos, que queriam apresentar um contraexemplo ao clero degradado e à sua vida corrompida. Conventos e beguinarias [comunidades de iniciados] foram capazes de conservar ainda por longo tempo sua autonomia deixando-se inspirar pelo lirismo do cristianismo místico dos menestréis.
O elevado ideal cavalheiresco refletia-se ainda na alma europeia, embora ela ainda mostrasse os traços da temeridade e da ânsia de poder. Pensemos aqui em Arthur e sua Távola Redonda e na lenda do Graal. Esse conto, provavelmente nascido no Languedoc cátaro, tornou-se depressa muito popular na Europa inteira. Vemos no cálice do Graal o Cristo interior, cada vez mais esquecido: o tesouro divino no coração do homem. Os alquimistas buscaram algo semelhante com sua Pedra dos Sábios, o lapisexcaelis ou Ouro Filosófico. Tudo aquilo que era impossível ser dito devido ao clima religioso insuportável foi, portanto, transmitido de modo oculto. Graças ao “impulso para o renascimento” da Renascença, a alma europeia pôde provisoriamente respirar de novo. O universo do pensamento europeu, pesadamente mutilado, foi outra vez religado ao ideal de vida antigo e se deixou inspirar pela Antiguidade Clássica.
Tal movimento nasceu na Itália, sobretudo em Florença, e sua influência expandiu-se rapidamente por todo o continente. A pedido dos Medicis, Marsilio Ficino traduziu, além das obras de Platão, a Hermética. Leonardo da Vinci foi considerado o protótipo do novo homem, o “homem universal” que estende os braços até os céus, como vemos no exemplo do homem vitruviano. E, quatrocentos anos antes da mecânica quântica, um livre pensador como Giordano Bruno já sabia da existência de universos paralelos – e, por causa de suas novas ideias, teve de pagar com sua vida, sofrendo uma morte horrível na fogueira de Roma. A influência da igreja romana fez-se sentir outra vez de modo sangrento, pois também no plano religioso um vento novo soprava sobre a Europa, desde há muito reduzida à escravidão.
Como instigador da Reforma, Lutero testemunhou muitos abusos perpetrados pela igreja, e pregou uma lista sobre isso na porta da igreja de Wittenberg. O impulso para a autonomia tornava-se cada vez mais o tema central dentro da consciência europeia.
Mas o que fazer quando um movimento tão revigorante quanto a reforma começa a se manifestar e se degenera rapidamente em uma iconoclastia selvagem e logo pede uma contrarreforma ainda mais sangrenta da qual o nome do Duque de Alba no oeste da Europa ainda provoca reações violentas? Não é por acaso que o nome do Duque de Alba ainda provoca reações violentas na Europa Ocidental. A Inquisição, instaurada no tempo das perseguições dos cátaros, escreveu na Europa muitas páginas negras.
No entanto, o movimento popular protestante, que ainda era a base da tradução da Bíblia em cada língua, foi se cristalizando nessa doutrina. Toda tentativa com o objetivo de interpretar essa Bíblia mais livremente e mais simbolicamente foi sufocada por um imperativo sola fide, sola gratia, sola scriptura (somente pela fé, somente pela graça, somente pela escritura).
Quando Calvino foi testemunhar sobre sua doutrina de predestinação simplificada, o protestantismo já se mostrara de fato insuportável em rejeitar a experiência pessoal e mística. O suíço Michel Servet teve de pagar sua oposição ao batismo das crianças com a própria vida. Mas o poder da igreja monolítica de Roma foi definitivamente quebrado e a sombria Idade Média chegou ao fim.
No entanto, sob a máscara da liberdade e da emancipação, os germes da cultura burguesa foram ao mesmo tempo semeados na Europa, impedindo-a de aceder a qualquer significado mais profundo. Já nem o monge nem o sacerdote encarnariam o ideal religioso, mas sim o artesão que trabalhava duro e consciente de seus deveres, o homem próspero cuja fé plena de obrigações podia ser medida no cumprimento de suas obrigações e no cuidado com sua mulher e suas crianças.
O burguês rico já não aguardava sua salvação depois morte e já não vivia sua religião na igreja, mas praticando-a em seu estúdio, em seu escritório e em seu meio familiar. Aí estava o primeiro fundamento do que mais tarde seria o capitalismo, o futuro rosto da Europa. Explica-se: o pano de fundo religioso recuaria pouco a pouco no decorrer dos séculos seguintes; e somente o ganho material comum e o sucesso pessoal sobreviveriam. Estava traçado o caminho para uma total profanação do mundo até que ele já não fosse senão o domínio da obtenção de um ganho social.
No entanto, os aspectos mais sombrios desse “humanismo otimista” por enquanto deveriam aguardar alguns séculos. Durante a maior parte do tempo de sua história cultural, a Europa deixou de ver a luz da Rosa-Cruz. Enquanto ainda se encontrava na encruzilhada dos tempos, ela foi chamada à reforma geral a fim de evitar ainda uma degenerescência espiritual. Johann Valentin Andreæ foi o porta-voz de um grupo de sábios vanguardistas de Tübingen que souberam religar a sabedoria dos antigos mistérios ao espírito dos novos tempos, pleiteando um cristianismo espiritual mundial.
O nascimento de um novo tipo de ser humano já era anunciado pelo artesão coureiro Jacob Boehme, de Görlitz, em sua obra Aurora. Por toda parte se inflamava a esperança de que “a Europa daria à luz uma criança vigorosa”, conforme diziam os manifestos rosa-cruzes. A Guerra de Trinta Anos pôs um fim sangrento a essa esperança ainda prematura. Mas, apesar disso, os pensamentos elevados abriram um caminho para o resto do continente até a Inglaterra. Foi nessa mesma atmosfera que a franco-maçonaria pôde se organizar e o chamado dos rosa-cruzes pôde encontrar um solo nutridor por algum tempo. Essas elevadas diretrizes espirituais que nasceram nesses círculos foram rapidamente arrastadas por sua contracorrente, que se pôs em movimento durante o século 18, o Século das Luzes. A renovação espiritual universal à qual os manifestos rosa-cruzes chamavam – ainda ressoa – contraiu-se até tornar-se um ideal humanista no plano horizontal.
Este último venera o intelecto humano, a razão (sobretudo na França e na Inglaterra), como a aquisição mais importante da civilização ocidental. Essa razão libertaria o homem, tornando-o, assim, autônomo com relação a toda autoridade e expulsaria para sempre as sombrias nuvens da superstição medieval. A magia e os rituais foram resolutamente substituídos pela ciência e pela técnica. As portas de acesso às primeiras descobertas científicas mantiveram-se largamente abertas e, para muitos, foram sempre consideradas as aquisições mais importantes da civilização europeia.
Por mais que Isaac Newton se sentisse plenamente à vontade no mundo vivo da alquimia e da astrologia, foi promovido a primeiro profeta da nova religião ateísta. Um papel que seria rapidamente tomado por Charles Darwin, cuja Teoria da Evolução foi elevada ao título de novo dogma. A origem e a gênese humana ficaram reduzidas à busca do elo que faltava para unir o ser humano ao primata.
A Europa vivia na embriaguês da crença no progresso e esperava que os desenvolvimentos da ciência empírica e da técnica proporcionassem ao homem uma felicidade permanente. Foi uma época de otimismo exagerado; do qual a Revolução Francesa soube se beneficiar e transferir para outros países.
Outro desmantelamento das instituições do poder tradicional ocorreu em todo o continente, podendo sua nova moral ser resumida pela divisa, “liberdade, igualdade, fraternidade”, para cuja realização da religião e a igreja haviam se tornado totalmente inúteis. Afinal, o progresso social e econômico havia substituído a saúde interior da alma.
Como instigador da Reforma, Lutero testemunhou muitos abusos perpetrados pela igreja
A liberdade de opinião e o poder de defender seus próprios direitos constituíam então as principais características da identidade europeia. No entanto, nem mesmo os incontáveis ideais coletivos puderam impedir a civilização europeia de ser, a longo prazo, cada vez mais minada por um aniquilamento crescente.
Pensadores como Nietzsche já haviam previsto isso há muito tempo ao constatar que Deus estava morto e que os próprios homens o haviam matado; que eles deveriam, em seguida, criar um novo deus, à imagem limitada de si mesmos. Correntes filosóficas como o existencialismo, o estruturalismo e o pós-modernismo apresentaram a versão definitiva dessa tendência.
Parecia, no fim das contas, que o campo de visão do homem ocidental, que fizera de sua liberdade seu ideal, não poderia se estender mais longe que o instante de felicidade que lhe fora roubado pela consumação efêmera de todo tipo de bens.
Finalmente, no entanto, o ideal europeu – fundamentado nos valores da luz – é objeto de discussão nos círculos de indivíduos conservadores.
O bem-estar material produzido pelo egoísmo da corrente econômica apenas mascara ainda mais um grande vazio espiritual. Seria supérfluo descrever os excessos que nos são cotidianamente mostrados nas mídias que estão por toda parte.
Toda perspectiva elevada está fazendo falta à nossa civilização ocidental, e nem políticos, nem cientistas ou formadores de opinião ainda sabem como entusiasmar o cidadão com um projeto global. Ninguém parece poder ter uma resposta apropriada ao fato de que todas as formas de nacionalismo, de fanatismo e de extremismo ameaçam a sociedade ocidental até seus fundamentos e desmantelam a comunidade de forma irremediável.
O diagnóstico não é nada promissor. A civilização ocidental não está gravemente doente, ou, como dizem atualmente, em fase terminal? Não é verdade que esta civilização está em um processo irreversível de descida aos infernos? Não é verdade que a Europa que, de muitas formas foi o marca-passo desta civilização, perdeu toda a vitalidade, tornando-se incapaz de atender aos requisitos de nosso tempo?
A força vital desse velho continente é atacada tanto a partir do interior como do exterior. Agora que nos questionamos em toda parte a respeito da unificação e da consequente extensão da Europa; agora que sua hospitalidade se encontra sob pressão devido a um afluxo colossal de refugiados; agora, que o Ocidente, que sempre foi tão seguro tanto no plano político quanto no ideológico, já não é o centro do mundo; agora a Europa comporta-se sob vários aspectos, como uma velha senhora doente!
Alguém que sofre de perda de memória e já não sabe absolutamente qual foi sua identidade antes disso, e nem se lembra de algo que inconscientemente sempre foi seu grande sonho e ainda é: “Que a Europa traga ao mundo uma criança robusta!”.
É essa nova vida, inocente e ainda frágil, que devemos acalentar, todos juntos, e cuidar dela. Aqui e ali, ela se anuncia, em pequena escala, por meio de inciativas de cidadãos – sobretudo os jovens que querem romper com o comportamento relevante do sistema de consumo que nos torna escravos: eles tentam experimentar outras formas de sociedades, colocar em prática um sistema econômico baseado no comércio de trocas, ou se devotam ao bem-estar dos animais. Impulsionados por eles, alguns governos investem na produção de energia alternativa ou no desenvolvimento de cidades de pedestres – o que pode tornar nosso mundo mais habitável.
No domínio da arte, da ciência e da religião parece que também estão querendo derrubar os muros de separação. Buscamos em toda parte estabelecer uma conexão com as fontes da sabedoria antiga, com o saber original universal do qual nos distanciamos. A Europa e o mundo se beneficiarão muito mais se a Europa abandonar seu eurocentrismo e construir pontes para outras civilizações – tudo isso, é claro, desde que ela consiga refrescar sua memória a longo termo e novamente se recorde do mistério mais antigo de sua verdadeira identidade e de sua origem divina. ◊
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Pentagrama no 1 / 2018