A missão espiritual de Nicetas de Constantinopla

 
CONTRIBUIÇÃO AO SIMPÓSIO SAINT-FELIX:
PETRA AUGRANDJEAN, PETER HUIJS
 
A religião da Occitânia sempre foi um cristianismo simples e puro, um cristianismo na linha de João: não a espada, não o dogma, mas o Amor.
 
Era a igreja do Paracleto, e os que faziam parte dela chamavam-na afetuosamente “Joana”, sua bem-amada. Era a igreja do Espírito, da sabedoria, do Espírito Santo. No princípio, essa igreja era conhecida pelo nome de ecclesia franca. Mais tarde, depois de 1167, após a reunião de seus dirigentes em Saint-Félix, esse nome foi atribuído à diocese do norte da França, dirigida pelo bispo Robert d’Espernon. Nos séculos 10 e 11, quase não havia controvérsias nessa região. Havia um cristianismo simples, praticado em comum, tanto pela nobreza como pelo povo. Ele não provinha nem da Bulgária, nem da Itália, nem dos Bálcãs. Ele nascera e crescera em liberdade e fora nutrido a partir da Espanha no início da Idade Média. Falaremos disso mais tarde.
 
Os taruscos, com seu centro em Tarascon, constituíam um povo independente desde a época romana. Sob o governo de dois cônsules, ele permanecera autônomo, protegido de longe pelos condes e seus castelos. E, como por milagre, permanecera livre. Talvez tivesse passado despercebido, devido ao vasto abrigo natural do ambiente que oferecem os Pireneus e assim sua vida religiosa pôde se desenvolver em toda quietude. Ao contrário dos occitanos comuns que viviam sua religião plena de lendas, de histórias e de interpretações pessoais, os bonshommes iniciados seguiam uma linha joanina. Em pequenos grupos ou círculos, eles viviam sua ligação direta com o cristianismo original baseado nos três princípios: devotamento, consagração, iniciação. A transmissão era feita de pessoa a pessoa, do Ancião ao Jovem (ou discípulo).
 
Assim, podemos dizer que, na metade do século 12, o espírito occitano cristão estava presente no ar: sem organização hierárquica, nem ritos especiais ou culto oficial. Não pretendia ser um desvio, nem alimentar controvérsias, mas encarnava um sentimento religioso aberto, no qual Deus, o Pai, é tudo e tudo carrega; no qual o Filho é a Luz – a consciência – que explica o Pai em sua criação, e em que o Espírito Santo é um grande mistério, que somente pode ser compreendido pelo homem-espirito, o homem espiritual. Jamais os fiéis dos pireneus colocaram uma igreja, um sacerdote ou um papa entre a alma humana e o mundo divino; e certamente jamais colocaram um ávido representante da dinastia dos Capeto, dos reis da França. A divisa desses fiéis dos Pirineus era “Deus é amor”, um amor que podia agir em cada alma receptiva. O amor é a origem do homem, pelo amor tudo pode crescer, e a alma humana também: formação – reformação – transformação. Eis o cristianismo puro! Deus é amor!
 
Os fiéis pireneus não conheciam nenhum deus “mau”, nem Arimã, nem inferno. Este mundo, com a influência dos anjos decaídos e dos filhos de Deus decaídos já é suficientemente ruim como está. Eles tampouco eram ocultistas ou esoteristas, como às vezes se afirma. Contudo, eles eram estudantes diligentes da natureza. Os bonshommes conheciam as propriedades medicinais das plantas e, por isso, caminhavam pela região para assistir suas famílias, seus amigos e concidadãos na doença, na vida e na morte, mas também para apoiá-los em suas atividades cotidianas. Na Occitânia, a fé era tão natural quanto o ato de se respirar. Era uma questão da alma, do coração, e não uma construção mental. Essa fé era inclusiva, abarcante, envolvente. Havia igualdade entre o homem e mulher, ambos eram igualmente apreciados e enraizados numa região acostumada a ser livre. O termo “cátaro” gera confusão, além de não ser medieval. Eles eram conhecidos como os Fiéis do Amor, ou então, no linguajar comum do Languedoque eram chamados de bons omes e bonas femnas.

Sua maneira de viver encontrou uma forma de expressão religiosa em todas as camadas da sociedade. Na Aquitânia, a província de Septimânia do antigo império romano, cujas infraestruturas ainda estavam presentes em todo lugar, a ecclesia franca vibrava em todos os degraus da escala social, e os bonshommes provinham igualmente de todas as camadas da sociedade.

Isto foi descrito magistralmente por Antonin Gadal em torno de 1956:  “O espírito que sopra como o vento no espaço, preparou o caminho para Marcos de Mênfis, repleto de uma profunda sabedoria. Em 350, ele havia difundido seu ensinamento por toda a Espanha. Seu discípulo Prisciliano levou o Templo do Espírito, a Igreja do Amor, para a Gália (a antiga França), a Bélgica, à qual pertencia a Holanda, e para a Alemanha. […] Em 380, Prisciliano foi capturado e decapitado em Tréveris, na Alemanha. […] No final do século 8, Felix de Urgel (antes de 781 – de Lyon, a partir de 818), depois de muitos outros discípulos de Prisciliano, tornou-se bispo de Andorra e do Sabarthez e seguiu o mesmo caminho de Prisciliano. No ano de 800, ele também foi preso em Aix-la-Chapelle. Desde então, quantas pessoas não foram sacrificadas para romper esse movimento irresistível do Espírito que atravessava o mundo! Henrique III mandou prender os bonshommes ou perfeitos em 1052, em Goslar, Alemanha. Tanchelm foi morto na Antuérpia em 1115 […]”.

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Mulher dançando. Estela em Gosica Han próximo a Konjic, Herzegovina

Por volta do ano 1000, vemos a fé do sul da França adquirir mais força, à medida que a infraestrutura introduzida por Carlos Magno perde sua poderosa organização centralizada. Assim, as famílias nobres locais passam a exercer maior influência. Nessa atmosfera livre, floresceu uma cultura romana jovem; ela expressava seus ideais em sua própria língua, que era espiritual e nobre. Os filhos e filhas da nobreza levam adiante essa cultura e ocupam postos importantes. Eles formam o grupo dirigente e oferecem proteção. Sob tal proteção, a fé e o povo podiam desenvolver-se. Nessa estrutura flexível, prevalece a liberdade de pensamento. As pessoas compreendem umas às outras e sua ecclesia dispensa grande organização.

No momento da visita de Nicetas, o conde de Foix era Roger Bernard. Apesar de seu caráter impetuoso e de seus laços estreitos com o reino de Barcelona, o conde tinha uma fraqueza pelas pessoas que professavam essa forma pura de fé. Essas pessoas que não buscavam bens materiais, irradiavam uma estranha doçura; combinavam uma simplicidade incomum com um desinteressado amor ao próximo. Eram características ideais para favorecer a saúde e uma coexistência muito humana em sua região. Sua esposa Cécile, uma filha da casa de Trencavel, era um grande apoio para esses novos cristãos. Seus filhos – entre eles Esclarmonde, que mais tarde tornar-se-ia a princesa cátara, acalentavam seus ideais e apreciavam as histórias e os ensinamentos que os Fiéis do Amor levavam aos castelos durante suas visitas.

Não podemos dizer, no entanto, que essa nova coexistência, essa convivência ideal, fosse recebida de braços abertos por toda a elite da sociedade occitana, pois o papa e o rei, cada vez mais influentes, observavam com desconfiança o desenrolar dos acontecimentos na região de Toulouse.

Para nós, seres do século 21, é quase impossível imaginar a visão de mundo e a percepção do homem medieval. Nos tempos modernos, há quem goste de ver os ensinamentos cátaros envoltos em mistério, repletos de conhecimentos secretos e esotéricos. Não poderia haver erro maior.

O homem medieval tinha uma grande necessidade de viver e atuar no âmbito da ordem natural das coisas na sociedade. A ordem natural é a ordem que Deus deu ao mundo e a ordem social decorre dela. Havia um rei distante, e havia um conde ou um senhorio nas proximidades. Havia um bispo distante, e havia um diácono nas proximidades. Essa ordem era ao mesmo tempo a base e o campo de existência nos quais o homem medieval desejava passar sua vida. Ele não pensava em linguagem, em textos, nem no marco teórico que os historiadores gostariam de lhe imputar a posteriori.  

Na Idade Média, pensar, ler e escrever era um privilégio de um grupo restrito aos monastérios, palácios e atividades eclesiásticas. Nos castelos e fortalezas ocorriam torneios para cavaleiros e concursos de trovadores. O homem comum não fazia parte desses círculos, salvo por entregar produtos agrícolas e outros bens. Essa ordem social determinava tudo e o homem aí ocupava o lugar que o cosmos lhe havia destinado. Nos relatórios da Inquisição, os relatórios de Doat, que Emmanuel Le Roy Ladurie abordou tão bem, entre outros materiais, em seu livro Montaillou, as vítimas locais revelam um espírito e uma filosofia de vida que chegam a ser pueris, ou até mesmo ingênuos. Isso talvez seja chocante para quem esperava uma religião cátara dualista e esotérica, com conceitos rigorosos. Mas não havia nada disso. Essas ideias surgiram mais tarde, sob a pressão da oposição institucionalizada, de um lado, mas também pela influência de Nicetas. Quem tem isso em mente, provavelmente pode imaginar o cristianismo occitano em sua forma livre, não hierárquica e sem qualquer dogma.

O homem medieval experimentava grande desejo de viver e de estar na ordem social

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As armaduras dos grandes mestres da Ordem dos Templários (Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão)

No entanto – e isto é notável – o caminho da iniciação – a reformação – estava aberto a todos. Os perfeitos fundaram casas onde acolhiam os fracos e doentes. Também criaram comunidades e escolas onde eram ensinados os primeiros princípios de um cristianismo livre, em espírito de unidade e amor. O entusiasmo por uma vida pura, voltada para o outro, para o reino interior, o reino de Cristo, tornou muitas pessoas receptivas ao modo de vida e ao longo aprendizado dos parfaits.

A essência do espírito occitano não se encontrava em argumentos políticos ou teológicos, nem mesmo nos princípios sociais que precederam as iniciativas civis que iriam se desenrolar posteriormente, nem tampouco nas igrejas organizadas. Estes elementos estão entre as causas exteriores que desempenharam seu papel no drama aquitano. Uma tragédia que, na verdade, já se delineava a partir do momento em que Nicetas deu uma nova estrutura às igrejas do sul da França, organizando-as em seis dioceses. Em maior ou menor grau, isso tornou-se uma ameaça para a autoridade institucional da Igreja de Roma. Se bem que isso não tenha sido intencional, mas justamente porque após 1167 começasse a surgir uma igreja estruturada em seu conjunto no sul da França, reconhecemos nesse fato um primeiro passo para a destruição estrutural da cultura, do regime político e do cristianismo livre nessa região. Em 1179, o Concílio de Latrão proclama a cruzada contra os albigenses.

Nicetas não foi o responsável somente por uma forma exterior. Ele também introduziu uma ação religiosa simples, chamada de sermone: uma oração, uma humilhação coletiva, um perdão e uma bênção. Cansado dos excessos romanos, ele orientou a congregação para a simplicidade apostólica, que remontava a Cristo e seus discípulos: um bispo e doze diáconos. As sete comunidades da Ásia eram constituídas de um bispo, um filius major e um filius minor –  um irmão mais velho e um mais jovem -, bem como de diáconos. Entre eles reinava a livre autonomia, e durante o Concílio de Saint-Félix, Nicetas aconselhou às novas dioceses da França manter a mesma atitude entre si: respeito à independência de cada uma. Algo que, para os habitantes da Aquitânia, não representava nenhum problema, uma vez que, exteriormente, essa era a essência do espírito da Occitânia. Seu pensamento estava pleno de liberdade e de respeito à autonomia de cada um. O homem era livre, espontaneamente receptivo ao divino; nele, a alma e os poderes espirituais podiam se expressar e se manifestar livremente.

A partir do ano 1000, à medida em que as antigas estruturas de Carlos Magno começavam a se enfraquecer, essa liberdade destacava-se cada vez mais. Ao mesmo tempo, contudo, surgiram as primeiras fogueiras. Uma leveza espiritual atravessava toda a região, como uma primavera espiritual. Daí resultou uma compreensão natural do reino interior, uma aspiração ao Reino do Amor. Ele será o galardão de todo cristão que consiga vivenciar “o bom fim”. Esse espírito era absolutamente autêntico, natural, a verdadeira ordem das coisas; ele era garantido pelo consolamentum na hora da morte. Formação – reformação – transformação. Nas discussões científicas isso é esquecido premeditadamente, ou deixado de lado como algo sem importância.

No entanto, aí se encontra a essência. Todo occitano compreendia Cristo quando ele dizia: “Meu reino não é deste mundo”. Todo occitano almejava esse reino, de uma forma espontânea, como costumam fazer as crianças. O mundo exterior, conhecido, era o mundo do servir, da gênese e da construção. Ele é o ponto de partida e representa a possibilidade. O mundo exterior é um fato para cada ser humano, ele é a possibilidade que é dada a cada vida. Os bonshommes e as bonnes femmes consideravam que lhes fora atribuído um tempo relativamente curto para obter a reformação, a recriação interior (a transfiguração). “Cria em mim, ó Deus, um coração puro” – assim o expressou o salmista (Salmo 51, 10).

O sofrimento dos outros era seu sofrimento, esse era o seu cristianismo simples, sua prestabilidade e sua compaixão. O estudo e o devotamento levavam-nos à iniciação, à transformação, ao nascimento do homem-espírito, ao homem astral. Era este que pertencia ao outro reino. Se quisermos falar de dualismo – o que é um conceito muito rígido quando se trata dos fiéis do amor da Occitânia – então seria o conhecimento de que no ser humano havia uma figura oculta, um ser angelical latente em seu interior. No mundo também há uma esfera puramente espiritual, ligada às estrelas do cosmos. Era dali que eles retiravam seu entusiasmo. Ela era a fonte de sua força, para poder suportar o sofrimento incomensurável que os esperava. Isso explica também os testemunhos desconcertantes de que, em inúmeros casos, eles se jogaram nas flamas, cobrindo o rosto com as mãos.

Qual teria sido o motivo para convidar o sábio e poderoso bispo de Constantinopla, Nicetas, à Occitânia? Sua presença seria necessária? Os occitanos tinham ouvido que esse patriarca viajava e trabalhava há muitos anos na Bulgária e na Lombardia, lugares onde reintroduzira a estrutura original das primeiras comunidades cristãs. Por seu intermédio, eles esperavam reconectar-se com a fonte da qual também a sua fé provinha. O cristianismo occitano não era maniqueu, nem pauliciano, nem bogomilo, mas autenticamente cristão. Isso foi o que Nicetas confirmaria em Saint-Félix-de-Caraman em maio de 1167. Graças a ele, a hierarquia original foi reinstaurada: para cada região um bispo com um círculo de doze diáconos, sob a proteção espiritual de um patriarca. Numerosos novos candidatos, vários deles oriundos da nobreza local, receberam de suas mãos o consolamentum dos viventes. Ao mesmo tempo, os novos e os antigos bispos discutiram a organização de sua igreja, cujo número de dioceses passou de quatro para seis.

  • Oitenta anos depois estava concluída a primeira fase do drama dos albigenses. A cultura romana fora destruída e, apesar das flamas de inúmeras fogueiras, milhares de almas que se encontravam no caminho das estrelas puderam alcançar sua liberdade nos domínios espirituais do reino do amor. 
  • Ao mesmo tempo, Rainerius Sacconi escreve que havia dezesseis igrejas heréticas diferentes, de Constantinopla até o Oceano Atlântico, cada qual com o nome de sua cidade ou região. Ele nomeia essas dezesseis igrejas na Summa de Cathari que escreveu em 1250 como manual para a Inquisição. E escreveu ainda o seguinte: “Perdoem-me utilizar aqui o nome de Igrejas, mas é assim que elas se chamavam”. Sacconi menciona também que, após a queda de Montségur, não restariam mais do que 4000 perfeitos.

Mas o acontecimento memorável em Saint-Félix-de-Caraman, há mais de 850 anos, foi um momento de alegria, de esperança e encorajamento. Dezenas de filhos de famílias nobres receberam o consolamentum dos viventes. Foi uma grandiosa efusão de bênçãos, um impulso prodigioso proveniente do mundo do Paracleto.

Foi graças a Nicetas que eles puderam ser tocados. A força do patriarca das sete igrejas da Ásia confirmou-lhes que o reino do amor era uma realidade verdadeira e espiritual. Por seu intermédio, eles perceberam interiormente as estruturas originais desse reino espiritual. Suas almas se encheram de coragem e esperança, e ele os encorajou a ligar-se às igrejas apócrifas que existiam no mundo e se mantiveram firmes: as igrejas da Bulgária, Dragovic, Melínguia e da Dalmácia. E sobre seus irmãos e irmãs occitanos, Nicetas expandiu a harmonia do reino interior, que está protegida para sempre no campo do Espírito Santo. ◊

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Pentagrama no 4 / 2017

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