FILÓSOFO, JURISTA, PRELADO, SÁBIO E DIPLOMATA
1401 -1464
De cada janela vemos, do outro lado do rio, às margens do vale, vinhas trepadeiras. Os níveis de água mais elevados são gravados a cada ano nos muros exteriores, como se quisessem advertir que o rio tão idílico de ver às vezes se torna indomável. Em 1995 a água alcançou a altura de um homem, assim como em 1997 e em 2011. Estamos agora diante da bela casa de Nikolaus Krebs, ou seja, de Nicolau de Cusa (Cusano), o nativo célebre, o habitante dessa cidade alemã de Mosel chamada Kues (Cusa).
Mosel e as outras hidrovias frequentemente incontroláveis eram de interesse crucial para Nicolau e seus cidadãos. Quem queria viajar ou desejava transportar mercadorias estava, por assim dizer, destinado a navegar o rio subindo as correntes até Trier e descendo até Coblença, onde, depois de Rijn, um novo mundo se desvela.
Descendo a corrente, chegamos, via Colônia, aos Países Baixos: Arnhem, Nimega, Deventer, Zwolle, Utrecht e Louvain. Subindo, passamos por Mainz e pela Basileia, e de lá a Itália nos acenava: Milão, Padova, Ferrara, Florença e Roma. Cidades que, todas, como placas sinalizadoras, haviam amplamente determinado a vida do pensador alemão do século 15.
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No cruzamento dos tempos
Nicolau de Cusa compara a relação entre Deus e o homem à de um moedeiro e de um cambista. De um lado ele acentua a invisibilidade e a reserva do cunhador de moedas e do outro a indispensabilidade do cambista e do usuário, que devem ser capazes de reconhecer o valor de troca das diferentes moedas. Com moedas totalmente desconhecidas nada se pode fazer no mercado. Do mesmo modo, o homem detém uma posição única, ele determina o valor das coisas, e se não o faz, a existência do que foi criado por Deus permanece sem valor e inútil.
O filósofo Cusano do século 15 parece destacar-se com essas metáforas sutis referentes à relação entre Deus e o homem, mas não apenas por isso. Ele foi também o inventor das lentes convexas e côncavas, com as quais ainda se executa correções ópticas. Também foi o criador do novo calendário gregoriano, ainda hoje em vigor. Eis o retrato de um sábio polivalente e de um diplomata.
Que Hennen Kryffts pai tivesse sido um armador e um negociante, não era tão extraordinário; havia dezenas deles em Mosel. O excepcional para a época foi ele haver liberado os meios financeiros necessários para seu filho talentoso estudar na longínqua Heidelberg desde a idade de quinze anos.
O dinheiro
Os documentos dignos de confiança concernentes à juventude de Nicolau são bem poucos. No entanto, é irrefutável que ele podia se vangloriar de possuir duas coisas importantes: dinheiro e uma formação acadêmica. O dinheiro desempenhou um papel importante em sua vida – como uma metáfora evocadora.
Entrando em sua casa natal – com sua arquitetura robusta, seus salões luxuosos, sua biblioteca e as armas da família bem visíveis – só podemos chegar a uma conclusão: o pai Hennen devia ser um capitão de embarcações (para o transporte do vinho) consideravelmente rico. Os cronistas da igreja de então estavam aparentemente do seu lado. Um padre eminente possuidor de enorme fortuna pessoal não correspondia absolutamente à imagem ideal de pobreza que os claustros da devoção moderna gostariam de difundir antes de tudo. No cartório de um convento cartuxo podemos encontrar um registro segundo o qual Cusano, durante uma visita festiva, não quis reconhecer sua irmã Klara também presente “porque, estando vestida de maneira rica e suntuosa, ela negava suas origens pobres”. “Semelhante história é totalmente inventada”, declarou o jovem pesquisador que, durante nossa visita à biblioteca da casa, tinha um arquivo PowerPoint sobre os jovens anos do prelado. “Isso serve para salientar a observação das regras do claustro e destacar para o mundo exterior que Cusano teria sido um religioso exemplar.”
Ele ressaltou também um fato biográfico impressionante demonstrando que o dinheiro desempenhava um papel em segundo plano. Cusano foi consagrado padre aos 37 anos, ao passo que seu irmão mais novo, Johannes tomara esse caminho havia longo tempo.
Quereria ele manter o máximo possível a empresa comercial da família, da qual deveria ser o diretor como filho mais velho? Acreditaria perder seus direitos à herança? Ou desejaria ele – nascido diplomata – manter as mãos livres do olhar da igreja? O fato é que Cusano doou o capital póstumo da família a um hospital para os pobres em sua cidade natal. Trinta e três homens idosos de diversas classes sociais, seis da nobreza, seis do clero e 21 cidadãos do povo aí receberiam abrigo e cuidados. Seis séculos mais tarde, o estabelecimento caritativo de Cusano ainda está intato e atualmente também é utilizado por mulheres. O edifício branco, munido de uma biblioteca monumental, é o emblema da cidade. O próprio Nicolau jamais o viu. Ele morreu em 11 de agosto de 1464 em Todi. Seu coração repousa no Cusanusstift (o estabelecimento acima mencionado). Seu corpo repousa na Igreja de São Pedro em Vincoli, Itália.
A educação
Alguns anos antes de haver estudado em Heidelberg, Nicolau foi a Pádua aprender direito, principalmente direito eclesiástico. Lá, terminou seus estudos em 1423 como doutor em direito canônico. Nicolau fez muito amigos em Pádua; estes ocuparam a seguir posições eclesiásticas importantes, como os papas Nicolau V e Pio II. Depois de Pádua, ele foi estudar teologia e filosofia em Colônia, onde sem dúvida sofreu influência de Heymeric van de Velde (Heymericus de Campo 1395-1460), filósofo respeitado por todos, que ensinava então nessa cidade.
Seu pensamento certamente teve alguma influência por coincidentia oppositorum, expressão utilizada para designar a coincidência dos contrários. Ao mesmo tempo, Cusano ensinava aos colegas de Colônia o direito eclesiástico, mas em verdade fora até lá com a intenção subjacente de estudar ali os trabalhos do filósofo polivalente Ramon Llull. Mais tarde, as ideias multicoloridas desse catalão influenciaram grandemente as atividades de Cusano, considerado reconciliador infatigável entre o Islã e o cristianismo.
Mas como sua expectativa a respeito de Llull não foi inteiramente satisfeita em Colônia, ele foi a Paris em 1428, onde fez resumos de seu trabalho.
Os livros
Ele também tinha a intenção secreta de comprar livros em grande escala durante sua breve estada em Paris. Por essa mesma razão, e no caminho de volta a Colônia, ele parou em Lauduno, pequena cidade do norte da França, que era então um centro de ciência e de cultura. Em todos os lugares aonde ia, e durante toda a sua vida, Cusano comprava livros e objetos curiosos em abundância. Para o colecionador Cusano, a vida era uma educação permanente; a leitura, um comportamento de vida.
A seguir, tudo se passa muito depressa. Nicolau começa a se tornar um nome como sábio, mas pressente que seu futuro não aconteceria no meio científico. Por duas vezes ele recusa a oferta de lecionar na universidade de Lovaina. Seu primeiro sucesso foi provar que a célebre Donatio Constantini 2 era uma falsificação. Um segundo grande sucesso cientifico, oculto para o grande público, teve de esperar mais de um século antes de ser reconhecido. Cusano fez uma nova criação do calendário Juliano e a submeteu ao Concílio de Basileia em 1436 para aprovação: De reparatione calendarii. Foi um fracasso, mas quando sua proposição retornou via Concílio de Trento, esse calendário foi instaurado em 1582 pelo papa Gregório XIII, que imediatamente o associou a seu nome: o calendário gregoriano, utilizado até hoje. Quanto ao reformador do calendário, ele teve de se contentar com uma modesta pedra comemorativa na ponte entre Cusa e Bernkastel. O dinheiro e a renovação cientifica foram os pilares, conforme mencionado acima, sobre os quais Nicolau fundamentou sua vida. Mas de um ponto de vista psicológico, havia aí uma lacuna: ele era de origem modesta, não nascera nobre, o que lhe teria proporcionado a consideração social, no entanto, é frequentemente mencionado em seus textos que ele alcançara o grau de cardeal e que diariamente se sentava com os grandes da terra durante as refeições. Ele parecia ter a necessidade de falar continuamente. Talvez isso prove que no fundo ele se sentisse estrangeiro; esse é o preço que frequentemente os gênios devem pagar.
Cusano doou o capital póstumo da família a um hospital para os pobres em Cusa
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Na cena do mundo
Assim como são frágeis as certezas que temos quanto aos anos da juventude de Cusano, assim são consideráveis e acessíveis as fontes que relatam sua existência ulterior, sua vida sob os holofotes no palco do mundo. À primeira vista, Nicolau de Cusa pareceria ser o homem ideal para fazer carreira no seio do aparelho administrativo da igreja de Roma. Ele foi mensageiro do papa, enviado muitas vezes com sucesso para negociações teológicas e políticas. Na ocasião de uma de suas numerosas viagens – após seu retorno de uma tentativa de reconciliação entre a igreja de Constantinopla e a de Roma – aconteceu-lhe algo surpreendente. Ao observar o mar “como presente do céu, do pai da Luz”, ele teve a experiência decisiva relativa à sua vida posterior, ou seja, que a unidade em qualquer nível viria antes da fragmentação.
Foi como se Nicolau de Cusa tivesse recebido um programa de vida, um programa que faria ecos contínuos irradiarem em sua vida posterior a tal ponto que todos os talentos ainda latentes viessem à luz.
Por um lado, o dominicano Cusano é um príncipe da igreja medieval aparentemente convencional e um místico intensamente religioso. Por outro lado, ele é um hermético, o precursor de Copérnico, conhecido por seu trabalho pioneiro no domínio da física e da filosofia. Assim, ele antecipa o ensinamento heliocêntrico de Copérnico ao afirmar que a terra não é absolutamente o ponto central do mundo como se supunha ainda na Idade Média, mas que ela mesma se movimentava. Ele foi o primeiro a produzir um mapa moderno da Europa Central, no qual marcou não apenas seu próprio espaço vital, mas também o território onde os novos tempos iniciaram seu florescimento. Ele é também o inventor das lentes convexas e côncavas, por meio das quais se corrige a miopia.
O Inefável
Mas, antes de tudo, Cusano foi um grande pensador, preocupado em dar um novo forte impulso a um momento no qual o pico da mística medieval aconteceu. Ele foi um dos primeiros pensadores influentes que atentaram para a percepção sensorial. Graças a ele, o empirismo3 fez timidamente sua aparição. Ele também foi o primeiro a desafiar a representação segundo a qual Deus é tão grande que se situa fora da criação. “Se Deus é infinito”, assim raciocina Cusano, “então é impossível que ele esteja fora da criação, da natureza e do cosmo. Ele não tem nenhum limite, portanto está em toda parte”. Ele acrescenta com precisão que Deus não é todas as coisas, mas que ele está em todas as coisas. Segundo Cusano, Deus não coincide com as coisas, como era concebido pelo panteísmo. Ele permanece ao mesmo tempo o Todo Outro. O célebre biólogo e filosofo Rupert Sheldrake, o teórico dos assim chamados campos morfogenéticos, retomou essa imagem de Deus em sua formação teórica batizando-a de panenteísmo. Totalmente de acordo com a tradição hermética, Cusano postula que Deus é “o Inefável” e simultaneamente que ele pode estar contido em todos os nomes.
Para Deus não há descrição possível, mas ele certamente é “tocado a cada uma dessas tentativas”. O pensamento de Cusano abarca o ser infinito de Deus e considera sua tarefa precisar o conceito de infinitude.
O moedeiro
Cusano compara a relação entre Deus e o homem como a existente entre o produtor de dinheiro (Deus) e o cambista (o homem), um negócio que se torna cada vez mais importante diante do aumento, em sua época, do tráfico econômico e do surgimento das cidades.
Mas também é igualmente muito importante para o cliente poder trocar o dinheiro de modo justo e eficiente. Ser inteligente significava naqueles tempos ser capaz de trocar o dinheiro de modo hábil e apropriado, de outra forma não seria possível alcançar o objetivo de sua viagem, pois para isso era preciso sempre atravessar inúmeras zonas que dispunham de sua própria moeda.
Cusanos salienta a discrição do cunhador de moedas e o fato de que o homem é indispensável, pois é ele quem deve fixar o valor das peças. Dessa forma, ele ocupa uma posição única. Quando o homem não determina o valor das coisas, a existência que Deus criou permanece sem valor. Tal existência pode ser comparada às peças de uma moeda totalmente estranha e desconhecida, com a qual nada podemos fazer.
A Santa ignorância
“Na imagem do mundo e do homem Cusano, um homem bom é qualquer um que seja humilde, perseverante e buscador de Deus.” A alma humana porta a imagem vivente de Deus e do próprio homem, segundo ele “um pequeno mundo”, um microcosmo. Seu poder de conhecimento não pode alcançar a perfeição senão pela união com Deus.
Em seu manuscrito De quaerendo Deum (Sobre a busca de Deus), esse tópico é detalhadamente aprofundado para o buscador como um caminho de salvação comparável à conhecida história da escada de Jacó. O degrau de baixo é o mundo dos sentidos, a natureza e o cosmos, e contém frequentemente impressões dissociadas e incoerentes. A seguir vem o degrau da faculdade do pensamento, que ordena e religa as impressões dos sentidos e no qual o pensamento do homem está essencialmente baseado na noção dos contrários. Pela meditação e a contemplação, ele pode, a seguir, alcançar a fase do intelecto (a razão), que pode transcender a fase das oposições fazendo-as coincidir em uma síntese (coincidentia oppositorum)4. O homem espiritual assim aprimorado alcança a seguir a humilde noção de “santidade” ou de “ignorância erudita” (docta ignorantia), um não-saber consciente, uma profunda compreensão dos limites do poder da inteligência humana; por isso ela é chamada também de “ignorância consciente”. Para o peregrino no caminho surge aqui uma parede, um obstáculo, que, segundo Cusano, não pode ser demolida senão pela graça de Deus. Se o buscador vivencia também essa fase, então abre-se o paraíso, uma forma de consciência que é uma representação da vida eterna.
O cambista deve reconhecer as peças de numerosos territórios. Ele deve fixar o valor em função do respectivo tamanho, do nome e do peso. E… o dinheiro do qual não se pode determinar o valor perde todo o significado!
Asclépio
Cusano utiliza regularmente a terminologia hermética, e não por acaso. Ele possui o mais antigo manuscrito de Asclépio (datado do século 9) de que a Europa dispunha na época e faz frequentes citações permitidas tiradas desse documento7. É dito que ele cita Asclépio tão avidamente para ressaltar que apoia firmemente o conteúdo dos trabalhos de Eckhart, censurados por uma interdição pontificial. O cardeal de Cusa certamente reconheceu em Eckhart muito de suas próprias ideias8. Ele confere a Asclépio uma visão humana otimista nova naqueles tempos: “O homem é um segundo Deus. Assim como Deus é o criador de todas as entidades espirituais e das formas da natureza, assim o homem é o criador de verdades racionais e de formas engenhosas”.
Germes para os novos tempos
Ele difunde sua imagem do homem durante suas numerosas viagens de diplomata e suplente do papa. Com a idade de 31 anos, durante o Concílio de Basileia, faz grande sensação com uma declaração. Não é ainda como padre que ele intervém para defender a causa de um amigo de seu país, Ulrich von Manderscheid, que pedia que o concílio tomasse uma decisão sobre um litígio de cunho eclesiástico. Nicolau de Cusa confronta os bispos presentes e os dirigentes laicos com a seguinte tese:
Sendo que os homens são livres por natureza, cada governo, seja baseado em leis escritas ou encarnado em um soberano, deve nascer exclusivamente de um acordo e de uma aprovação dos que a ele são submissos9.
Os altos funcionários ficam aborrecidos; eles não compreendem o que acabaram de ouvir. Até então, o homem medieval não passava de um peão numa sociedade hierárquica rígida, um ser que devia se curvar a maior parte do tempo à boa vontade de seu monarca. Nosso homem, surgido da modesta cidade próxima a Mosel, acaba de usar toda a sua autoridade natural para fazer ouvir seu comunicado temerário. E… não é olhado com desprezo! Os tempos parecem maduros para a renovação. O servo submisso tornou-se um homem livre, com direitos e obrigações. A semente dos tempos novos do renascimento está plantada.
Isso aconteceu na Basileia, em 1432. A história diz que Nicolau, seguro de si, teria aproveitado a transferência de sua cidade natal (em torno de 300 habitantes, 60 famílias na época; atualmente 4600 habitantes) para Heidelberg para se fazer chamar Nicolau de Cusa ou mais de Cusano. No entanto isso parece falso. Ele se registrou em Heidelberg como Nycolaus Cancer de Coesse, e utilizou o caranguejo em seu brasão. Foi somente em 1440 que seu amigo, o célebre humanista italiano Ennea Silvio Piccolomini, conferiu-lhe o nome Nicolau Cusano. ◊
OS PAÍSES BAIXOS
A reforma religiosa que sustentou o movimento da devotio moderna encontra caloroso apoio junto ao ambicioso reformador Cusano. Ele é como um amigo e simpatizante do movimento, e não por acaso doou a um convento cartuxo e à congregação de Windesheimer o controle de seu hospital para os pobres de Cusa. O exame dos documentos atualmente disponíveis não permite sustentar a hipótese persistente afirmando que Nicolau teria ido à escola em Deventer com os irmãos da vida comunitária. A confusão origina-se da bursa cusana que ele coloca à disposição dos estudantes necessitados habitantes da região da media Mosel. A bursa cusana entrou em vigor em 1469 por meio de um mandatário. Cusano havia morrido havia já cinco anos. Os biógrafos sem dúvida até hoje aceitaram o fato de que Cusano teria ido à escola em Deventer e teria proposto a outros que fizessem o mesmo.
Nos tempos modernos, as linhas de força de Cusano são também visíveis nos Países Baixos, por exemplo, graças a Harry Mulisch, em cujo trabalho Cusano aparece como figura-chave5.
Lemos em A palavra em ação de 1968: “Esse cardeal
surpreendente – que usa mesmo títulos dialéticos em seus livros – (…) introduziu no século 15 uma noção místico-dialética, coincidentia oppositorum: a interação dos contrários – que Hegel mais tarde definiria como o ser e o não ser. Além disso, ele foi o precursor de Copérnico. Foi também o primeiro a declarar que o espaço é ilimitado. Provavelmente esse Cusano dialético tinha – gostaria de escrever um livro sobre isso – algo a ver com a descoberta da América.” (p 113-4)
Mulisch, que esteve muitas vezes em Cusa, foi também durante longo tempo membro do círculo de Cusano. Segundo Marita Mathijsen, ele considerava o próprio Cusano a união dos opostos, pois “ele tem um pé na metafísica medieval e no ocultismo e o outro na ciência física empírica”.
Mulisch descobriu um fato intrigante sobre o famoso ano de 1492. Junto ao leito de morte de Cusano em Todi (11 de agosto de 1464) havia um amigo médico – Toscanelli – que era também geógrafo. Esse homem foi mais tarde o provedor das missões de Colombo. Tudo isso deve ter sido também para Mulisch, do ponto de vista literário, uma coincidência muito inspiradora.
DEUS E A VISTA
Para o cristão: “O nome Deus vem de Theoro, que significa ‘eu vejo’. Porque Deus está para o nosso mundo como a visão está para o mundo da cor. A cor não pode ser percebida senão pela visão, e para poder perceber cada cor sem entraves, o centro da vista é desprovido de cor. Por isso, considerado a partir do mundo da cor, a vista seria algo além do nada, pois o mundo da cor não alcança a vista que está além de seu próprio mundo. Mas ela experimenta que tudo que é se encontra no interior de seu mundo próprio. Caso ela não encontre a vista, esta, que existe sem a cor, carece de nome, pois nenhuma denominação de cor lhe é aplicável. A visão deu a cada cor seu nome como identificação, por isso, cada designação no domínio da cor depende da visão, uma vez que esta, que está na origem de todos os nomes, será muitas vezes interpretada como algo além do nada. Portanto, para utilizar uma comparação, do mesmo modo que a visão está relacionada com as coisas visíveis, assim Deus está relacionado com todas as coisas.”
Para o pagão: “Concordo com você sobre o que foi dito. E evidentemente admito que no mundo inteiro das criaturas não podemos encontrar nem Deus nem seu nome, e que Deus se retiraria de todo conceito assim
que qualquer coisa sobre ele pudesse ser citada com certeza. No mundo das criaturas, jamais saberíamos encontrar algo senão uma criatura. E no mundo da multiplicidade não encontraríamos o único (ou o não-múltiplo). E todos os nomes referem-se ao múltiplo (tudo tem um nome fora da unidade). O múltiplo não existe, no entanto, senão por si mesmo, mas graças a tudo o que precede o múltiplo. E embora o mundo do múltiplo e tudo o que é múltiplo sejam como são, isso ainda é algo desconhecido – porque ele é o não-múltiplo – no mundo do múltiplo. Por isso Deus, o ser oculto aos olhos de todos os sábios do mundo, é bendito pela eternidade.”
Fragmento de Dialogus de deo abscondito – diálogo do deus oculto:
Em resumo, poderíamos dizer que Deus não pertence à ordem onde reinam os nomes, como a visão e a cor pertencem cada qual a uma ordem diferente. Os nomes são úteis no mundo onde tudo é distinto. Mas Deus não é justamente o Um dos grandes que pudéssemos distinguir (dos outros). No entanto, nesse diálogo há também uma relação entre os dois domínios: assim como a visão é a premissa para a distinção das cores, assim Deus é a premissa de todas as distinções.
“É impossível que Deus esteja fora da criação”
SOBRE O AMOR
Cusano refere-se regularmente ao amor em seu trabalho, mas ele jamais escreveu algo universal sobre o amor. Se quisermos conhecer suas reflexões a esse respeito, devemos nos reportar a dezenas de suas prédicas. Estas não tinham qualquer relação com a ilusão vivida cotidianamente ou ligada a um contexto. Particularmente do tempo em que ele foi bispo em Brixen, entre 1454 e 1457, muitos sermões foram conservados. Eles revelam uma construção cronológica e uma temática profundamente refletida. Todos os seus sermões contêm anotações, melhoramentos nas margens, e foram classificados em ordem específica. Isso poderia ser a prova de sua intenção de fazer um livro, que jamais se realizou. Tudo leva a crer que seus sermões foram destinados a um grupo seleto do clero e a acadêmicos eruditos, pois não era um prato fácil de digerir que Cusano apresentava a seu auditório.
Em quase todos os seus sermões ele convida os crentes a se tornarem conscientes de sua vocação como analogias viventes de Deus, como portadores de Sua imagem, e a viver conforme sua imagem original interior divina. Isso significa que o homem deve oferecer suas qualidades semelhantes a Deus – seu intelecto e sua liberdade – para ser conscientemente essa imagem de Deus. Segundo o cardeal, o homem é especialmente chamado à realização de si intelectual e livremente consentida e pode se transformar, por esse caminho, até ser seu “ser verdadeiro”. Trata-se aqui do leitmotiv de todas as suas prédicas.
Para Cusano, o amor é tecido com o intelecto e a liberdade. “Uma vez que Deus criou o homem como um ser livre e inteligente, para que amando e adquirindo o conhecimento ele já seja capaz de retornar à sua origem e reconhecer a felicidade, o homem possui, assim, por natureza, uma força motriz que o mantém
orientado para sua origem. A afeição, tal como se manifesta no amor, deve ser sempre usada intelectualmente. “Porque sem a influência do intelecto, o amor é cego”; assim Cusano provoca em nós o risível com o seguinte provérbio latino: si quis amat ranam, ranam putat esse Dianam: pode acontecer que um amante que, devido ao amor cego, tome uma rã por Diana, a deusa lua… segundo a visão do cardeal, a afeição e o intelecto não podem existir um sem o outro. “O espírito é o princípio do intelecto e da afeição. O espírito é uma força simples que ultrapassa tudo, na qual conhecer e amar coincidem.” Essa coincidência acontece graças à sincronização de intelligere e amare no absoluto, a que o homem aspira e onde encontra sua felicidade suprema. A igualdade do intelecto e do amor relaciona-se a um aspecto importante para que se possa compreender bem a concepção de liberdade de Cusano. O intelecto e o amor estão ligados na origem; sim, os dois retiram sua qualidade justamente dessa circunstância.
Para Cusano, o amor é, portanto, bem mais que simplesmente uma aspiração profunda, bem mais que um impulso primitivo presente no homem. Para ele, trata-se unicamente do amor que se orienta para seu alvo, mediante seu próprio movimento. Porque a verdade é que o amor não fingido não pode ser forçado. Por isso Deus criou o homem como um ser livre e inteligente a fim de que ele pudesse escolher em liberdade. Isso sempre comporta, certamente, também a possibilidade de que o amor divino seja recusado. Cusano expressa seu conceito moderno e renovador a respeito do amor. Durante séculos o cristianismo suspirou sob a doutrina de predestinação de Agostinho. Sem havê-lo citado uma única vez, Cusano se distancia definitivamente dele.
Quando o homem não determina o valor das coisas, a existência que Deus criou permanece sem valor
Notas
1. Velde, Heymeric van de, Unidade nos contrários. M. Hoenen, Baarn, 1990.
2. De donatio Constantini (a doação de Constantino) é um documento do século 8, chamado também Constitutum Constantini (Decisão de Constantino). Segundo esse documento, Constantino teria confiado ao bispo de Roma a primazia sobre todas as igrejas e impérios do Ocidente. De donatio Constantini desempenhou um papel importante em toda a Idade Média na luta entre o papa e os monarcas. Somente no século 15 Nicolau de Cusa (1433) e o italiano humanista Lorenzo Valla (sete anos mais tarde) provariam que o documento era falso.
3. Embora muito incompleto, eu gostaria de caracterizar o empirismo como uma corrente filosófica na qual as percepções sensoriais são cruciais. Não teríamos nenhuma consciência antes de ter feito experiências sensoriais.
4. O ensinamento da coincidência dos opostos é considerado um avanço e tem adeptos fervorosos como
Carl Gustav Jung e o autor Harry Mulisch.
5. Isabelle Mandrella analisou tematicamente as preleções em sua dissertação Viva Imago A Filosofia Prática de Nicolaus Cusanus.
6. Prof. Dra. Isabelle Mandrella (Universidade Ludwig e Maximilian de Munique) fez a esse respeito, em janeiro de 2015, a apresentação Cusano. Seu texto seria publicado como livro no final de 2015. Por cortesia, ela nos deu uma amostra de sua história.
7. Inigo Bocken, A arte de coletar, Budel, 2004, 104. Segundo o autor, não é inverossímil que Cusano estivesse familiarizado com o pensamento hermético graças a uma tradução latina de um escrito de Apuleio chamado Asclépio, do qual um manuscrito encontrava-se disponível na Biblioteca de Cusa.
8. Gilles Quispel, A recepção de Asclépio na Idade Média, em G. Quispel (red.) Asclepius, Amsterdã, 1996, 227-251, Cusano e Eckhart 238-241
9. O texto foi incorporado mais tarde em De concordantia catholica de 1434
Pentagrama no 2/2017