“A verdadeira igreja de Cristo está no coração do homem”

Este artigo aborda o caminho de iniciação dos bogomilos mediante a descrição de dois rituais iniciáticos. Em seguida, ele chama a atenção para os dons particulares dos quais dispunham os iniciados e a maneira como utilizavam a Bíblia, sobretudo o Sermão do Monte e o Pai Nosso.

A iniciação entre os bogomilos
Se os cronistas medievais da Europa ocidental costumavam falar dos bogomilos de maneira hostil e maliciosa, falavam, contudo, de forma respeitosa de seus “apóstolos” – seus iniciados. Apesar das perseguições sangrentas dos poderosos deste mundo e da igreja dominante, os iniciados bogomilos trouxeram sua mensagem do cristianismo interior, não dogmático, com grande entusiasmo e poderosa influência. Manifestaram, em todas as circunstâncias, um comportamento irrepreensível.
 

Durante cinco séculos (950-1450) o movimento original gnóstico-cristão búlgaro manifestou-se no mundo, inicialmente nos Bálcãs. Graças à grande força de atração de seus apóstolos – os “Perfeitos” – os bogomilos conseguiram se expandir por grande parte da Europa: ao norte da Bósnia, no sul da Itália, na França, na região do Reno, chegando a Ásia e a Rússia.

Tornaram-se missionários, guias espirituais, foram os mestres dos cátaros, aos quais sobreviveram por um longo tempo. Não era tão fácil tornar-se um iniciado bogomilo! Uma simples declaração dizendo que desejava tornar-se membro da comunidade da fé bogomila não era suficiente. Era necessário passar por uma longa jornada preparatória da vida verdadeiramente cristã, seguindo o exemplo de Jesus. Ao final dessa jornada, o candidato começava sua iniciação como Crente, seguindo-se um longo período de provas onde ele deveria progredir atingindo a condição de Apóstolo ou de Perfeito.
 

Começava então um novo período de pelo menos três anos, em que seria gradualmente revelado ao candidato o conhecimento e a sabedoria ocultos, conservados em segredo por séculos. O acesso a esse conhecimento preparava o apóstolo para sua missão. No final desse período, ele estava pronto para receber a segunda iniciação, o consolamentum, que o ligaria permanentemente ao campo de vida divino e lhe daria a oportunidade de oferecer esse sacramento a outros.

O jogo duplo de um imperador
Encontramos a maior parte das informações sobre a iniciação bogomila no livro Panoplia Dogmatica (A Armadura do Aprendizado da Fé) do monge bizantino Eutímio Zigabeno. Ele escreveu esse livro no início do século 12, quando foi nomeado “Teólogo da corte” pelo imperador bizantino Aleixo I. Zigabeno extraiu seu conhecimento de uma longa entrevista que o imperador bizantino tivera com Basílio, líder bogomilo.
 

Simulando um interesse falso pela fé bogomila o imperador convida Basílio para uma conversa de vários dias em que todos os detalhes da doutrina foram comentados. Ocultos, por trás de uma cortina, monges católicos registravam a conversa. Ao final, revelou-se a Basílio o jogo duplo do imperador. Ele é levado a retratar-se com a igreja ortodoxa, negando a fé bogomila. Ante a recusa, Basílio foi condenado à morte em fogueira.

Todo homem verdadeiramente religioso é um herege e, portanto, um revolucionário

Três dias de jejum e de pureza suprema
De acordo com Zigabeno, a primeira iniciação bogomila só podia acontecer para o novato após um longo aprendizado, período vivido como ouvinte.  Durante essa fase, ele se voltava para a vida interior e confessava todos os seus “pecados”. Rezava intensamente e por muito tempo: sete vezes durante o dia e cinco durante a noite. Não tinha relação sexual, nem mesmo com sua esposa. Dispunha de uma vestimenta apenas.
 

Após atravessar esse período com sucesso, o ouvinte estava apto a receber o baptisma bogomilo (batismo). Ele era assim iniciado como um Crente. Durante essa iniciação, o Evangelho de João lhe era revelado através de um ritual mágico em que o livro de João era colocado sobre sua cabeça, enquanto era lido prólogo: “No princípio era o Verbo”; o Espírito Santo era invocado e cantavam o Pai Nosso.

O baptisma (o batismo) dava ao crente a possibilidade de recitar o Pai Nosso com os demais crentes – pois, como ouvinte, não lhe era permitido fazê-lo, por ainda não ser digno de tal ato. Era o prelúdio para a segunda fase que levava à teleiosis ou Consolamentum, acessível somente aos que queriam viver em total renúncia à vida material, durante pelo menos três anos, dedicar-se ao espírito, em oração constante, e aprofundar-se intensamente no ensinamento. Praticavam o jejum, não consumiam carne, nem leite, nem vinho.
 

Toda a comunidade observava se essas regras tinham sido seguidas e se o grau de desenvolvimento interno necessário fora alcançado. Ao final desse período, o candidato selava sua fé pela promessa solene de guardar os segredos da fraternidade bogomila. Só então estaria pronto para a cerimônia da segunda iniciação: a teleiosis (a realização ou perfeição), também denominada consolamentum entre os cátaros – o sacramento do Consolador, – o único sacramento, reconhecido por bogomilos e cátaros.

O perfeito põe em prática o modo de vida dos apóstolos
O consolamentum bogomilo tinha uma dupla função: exorcisar e purificar. Primeiro, as forças naturais (o “diabo”) que até então habitavam o “velho homem” eram extirpadas por uma oração. Então o candidato era lavado dos pés à cabeça com água não benta, de modo que qualquer vestígio do batismo ortodoxo fosse apagado e o “velho homem” expulso do ser.  Depois disso, o candidato se voltava para o Leste. O evangelho de João era colocado novamente sobre sua cabeça e todos os participantes da cerimônia postavam as mãos sobre o candidato enquanto cantavam um hino litúrgico destinado a dar-lhe força para seguir as regras e verdades relativas à fé da comunidade bogomila.
 

Finalmente o novo eleito recebia a famosa veste preta dos bogomilos. O iniciado era então instalado como Mestre ou Apóstolo e podia ocupar um lugar entre os Perfeitos.  Isso deve ser entendido no sentido expresso no Evangelho de Mateus 19:21: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu…”. Assim, o Perfeito renunciava a toda posse terrena, e seguia, por assim dizer, o modo de vida dos apóstolos. Além disso, deveria jejuar no segundo, quarto e sexto dia da semana “até a nona hora”.

O iniciado tornava-se um procriador de Deus
O que significava a teleiosis ou consolamentum para o iniciado e para o ambiente em que vivia? Em primeiro lugar, ele recebia profunda imunidade contra as seduções do mundo e do mal. Estava sempre conectado ao campo divino de vida e era alimentado por ele. Como havia alcançado alto grau de perfeição (savarshenstvo) era também chamado de “Habitante Celeste”.
 

Desse momento em diante, tornava-se não somente um apóstolo, mas também um theotokos (deus que irradia), o que significa a renovação a cada anunciação do Verbo Divino. A cada difusão da Luz divina no mundo, ele faz nascer em si o Deus interior, o divino. Tudo isso segundo o conhecido princípio hermético: Tudo receber, tudo abandonar para tudo renovar.

Provavelmente isso também explica a missão apostólica que os bogomilos desenvolveram na Europa. Um Perfeito ou Theotokos era para o mundo – assim como o Perfeito entre os cátaros – a prova viva de que todos podem vencer sua própria dualidade, seu dualismo interior. Isso é inequivocamente expresso no seguinte poema bogomilo:

O corpo que carregamos é uma criação das trevas,
mas nossa alma que o habita,
é o primeiro homem e o germe de Luz.
O primeiro homem que triunfou no país das trevas
agora também vencerá  em seu corpo mortal.
O espírito vivente, que irradiou o primeiro homem,
tornou-se agora nosso consolador,
o consolamentum.
 
Clarividência gnóstica e comunicação telepática
Um perfeito bogomilo dispunha de “uma clarividência gnóstica” mediante a qual ele podia profetizar. Esse dom causava um grande impacto entre seus opositores, mesmo os mais inflexíveis. Ele dispunha também da capacidade de comunicar-se “telepáticamente”. “Isso ajuda a entender a grande influência que os bogomilos exerciam em seu tempo, nos Bálcãs e grande parte da Rússia, apesar da restrição de seu raio de ação material”, escreve Jan van Rijckenborgh:
 
“As antigas fraternidades seguiam determinadas estratégias. Os participantes da Grande Obra dispunham individualmente de faculdades superiores, e alguns deles espalhavam-se, segundo um plano definido, por todas as regiões onde os irmãos deveriam instalar-se. Todos os irmãos e irmãs dirigentes dispunham dessas assim chamadas, faculdades superiores. Onde quer que se encontrassem, eles permaneciam em contatos intuitivos telepáticos, uns com os outros e podiam estabelecer reciprocamente um contato-alma durante as horas de sono, o que garantia uma extraordinária coordenação de todo o trabalho”.

Onde quer que se encontrassem, permaneciam em contato intuitivo, telepático

Purifica-me em meu ser interior e exterior!
Os bogomilos se reconheciam no Sermão da Montanha. Eles eram os verdadeiros “amigos de Deus”; os verdadeiros cristãos (pravikrsjani), que não precisavam de sacerdotes nem de rituais externos para entrar em comunhão pessoal com o divino.
 

Podemos reconhecer uma das bem-aventuranças do Sermão da Montanha – “Bem-aventurados os de coração puro, pois eles verão a Deus” – em uma de suas orações de purificação, que também encontramos entre os maniqueus:

Purifica-me, meu Deus.
Purifica-me em meu ser interior e exterior.
Purifica o corpo, a alma e o espírito,
Para que a semente de Luz cresça em mim
E faça de mim um archote.
Torna-me uma chama
Que transforma
Em Luz
Tudo em mim
E ao meu redor.
 

De acordo com o Sermão da Montanha, os bogomilos “não se preocupavam com o que haveriam de comer ou beber, ou com o que vestir”. “Eles se identificavam com os lírios do campo”. Viam “como crescem no campo. Não fiam nem tecem”. (….) Não andavam inquietos, perguntando: “Que comeremos, ou que beberemos?”, porque todas essas coisas os pagãos procuram. Afinal, “Vosso pai celeste bem sabe que necessitais todas essas coisas. Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas”.

Esta passagem é uma exortação para que colocassem em suas vidas, acima de tudo, o selo e o aprofundamento da verdadeira fé cristã. Reconheciam nela uma justificativa para que seus Apóstolos iniciados (“os lírios do campo”) tivessem a necessidade de permanecerem livres do trabalho aprisionador, a fim de dedicarem-se inteiramente à palavra de Deus.

A única oração central bogomila, o Pai Nosso, era reservada apenas aos Crentes e Apóstolos. Oravam sete vezes por dia e cinco vezes por noite em horas determinadas, e quando se deslocavam de um lugar para outro. Rezavam juntos quando se encontravam sob um mesmo teto. Ao longo da noite realizavam rituais e serviços secretos de oração.

Em primeiro lugar, invocavam o Espírito e recitavam o Pai Nosso de joelhos. Não mudavam praticamente nada na versão eclesiástica oficial do Pai Nosso, mas davam a algumas palavras um acento especial. “A versão da quarta súplica “Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia” era dita assim:” dá-nos hoje teu sagrado pão (transcendental, supersubstancial , imperecível).

O significado desta frase será explicado em outro artigo desta edição.

Perspectiva otimista da autolibertação
A historiografia dá ênfase à intensa ascese dos bogomilos e seu desprendimento do mundo. O enorme benefício espiritual que eles trouxeram é frequentemente exposto de maneira insuficiente. Os “Cátaros do Leste”, ao vivenciá-lo, prepararam para a humanidade um caminho iniciático impressionante, demonstrando que é possível ao ser humano escapar do poder de dualidade deste mundo. O que foi escrito sobre os cátaros também é válido para os bogomilos.
 

“Eles trouxeram a mensagem libertadora de que a centelha divina, presente em todo ser humano pode desfazer sua prisão material. Para isso, é necessário realizar uma imitação de Cristo bastante consequente. Cristo revelou ao homem como é possível redescobrir a pureza da alma mediante orações ininterruptas e uma ascese escrupulosa”. ◊

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Pentagrama no 4 / 2017

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