Ensaio
Na lei dos povos, a autonomia é a faculdade do ser humano de poder estabelecer regras para si mesmo. A independência de espírito é um fator importante para o homem moderno. Gostamos de nos considerar seres autônomos e independentes porque é a única maneira de podermos ser nós mesmos e nos desenvolver. Mas até que ponto somos autônomos? Ao lado dessa questão sobre nossa autonomia e nosso livre arbítrio, não podemos escapar ao tema mais fundamental: Quem sou eu?
(NÃO HÁ)
LIVRE EXPLORAÇÃO
DE ALGUMAS QUESTÕES
A RESPEITO DA AUTONOMIA
Faz parte da natureza humana enxergar a si próprio como uma causa e um centro de atividade, como um criador e um ator que tem controle sobre si mesmo.
Mas quem é ele – e o que ele faz?
Vendo de maneira superficial, essa questão parece evidente, e geralmente não paramos por aí; no entanto, no fundo, continuamos a nos preocupar com ela.
Poderíamos afirmar agora: “Eu sou eu mesmo, um eu sólido, separado dos outros eus, um ser-eu. Sou ao mesmo tempo o observador e quem decide minhas ações”. Então, sou uma entidade; evidentemente sou algo separado, com características particulares e uma vontade para exercê-las. Mas o que sou em termos de caráter, idade, sexo e papéis próprios não diz nada a respeito de quem sou!
Afinal, as características e os papéis vão mudando no decorrer do tempo entre nascimento e morte.
A sede e a fome
Seríamos apenas essa aparência toda e esse movimento? De onde vem esta existência? Independentemente de nossa crença atual no que se refere ao fato de haver ou não existência após a morte, poderíamos nos indagar a respeito do que havia antes de nossa concepção ou, indo mais fundo, nos interrogarmos sobre o que éramos quando, até os 2 anos, não conseguíamos dizer ”eu”, já que ainda não tínhamos noção alguma de nossa identidade.
Quando tínhamos “fome”, começávamos a chorar e, espontaneamente, também éramos capazes de beber. Naquela fase, não existia nada além do instante, e o reflexo de sucção surgia naturalmente. Ainda não havia ninguém para saber algo sobre si mesmo ou sobre o ambiente ao seu redor, já que não conhecíamos ainda nem tempo, nem espaço. Depois, aprendemos a dizer “fome”.
Em seguida, “João está com fome”, pois nesse meio tempo recebemos um nome. E mais tarde, com 2 ou 3 anos, começamos a dizer “Estou com fome”, pois lentamente adotamos um conceito-eu diante do qual os outros reagiam. O “eu”, com o qual podíamos nos identificar, tornou-se significativo para nós. Durante todo esse tempo, passamos a nos manifestar como “este sou eu” e isso nos era confirmado a partir do exterior. Uma programação que ia ainda mais longe, porque o “eu” quer dizer algo diferente de “você”. A dependência causada pelo que os outros pensam ou poderiam pensar sobre mim estava começando a surgir.
Além da educação dada por nossos pais, a instrução e a escolaridade passaram a nos influenciar: assim, fomos formados por todas as ideias convencionais e valores culturais, que logo aprendemos a interiorizar. Desse modo, fomos moldados até nos tornarmos uma personalidade associada a todos os papéis com os quais nos identificamos. Sem nos darmos conta, perdemos o sentimento espontâneo daquilo que realmente somos. Por essa razão, não é surpreendente que, cedo ou tarde, muitos se perguntem sobre o que existia antes dessa personalidade pré-fabricada.
O eu também parece ser uma armadilha e, sendo finito e muito limitado, nos faz duvidar de nós mesmos. Nossas ideias a respeito de quem somos e eventualmente de quem somos depois da morte parece que não se coadunam. Experimentamos nosso “ser” como uma realidade. Mas o que significa “real” nesse contexto? Somos verdadeiramente “reais”? Em que nos baseamos para afirmar que existimos de verdade?
O pensamento não pode ser essa base; chega uma hora em que percebemos isso. Apesar de sentirmos nosso pensamento como muito real, o que pensamos a respeito disso é: “Ele não passa de uma base fictícia para nossa existência. Não passa de uma existência imaginária. ”
Deve haver, então, algo que percebe nosso curso de vida a partir do exterior e que tenta nos mostrar essa existência sob uma perspectiva totalmente diferente, uma perspectiva que é um ponto de partida e a respeito da qual vamos fazer perguntas. O observador não pode ser o eu que percebe a si mesmo, pois ele vê apenas a imagem conceitual de si próprio formada pela percepção sensorial, o ato de pensar e o sentimento.
Agora diremos a vocês que existe outra percepção, outro pensar produzido fora dessa noção-eu. O que seria, então, esse algo que percebe tudo com liberdade e de forma clara, que vê as coisas como elas são de verdade? É o que realmente somos, que não muda e não assume nenhum papel variável. É o ser interior que a personalidade – nosso coração e nossa cabeça – pode animar com o sentir, o pensar e com ações não condicionadas.
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Após uma longa busca, um homem encontra a porta de Deus e bate.
Por detrás da porta, soam as palavras: “Quem está aí?”
O homem responde: “Sou eu, Senhor”.
Por detrás da porta, as palavras soam: “Vá embora, dois são demais aqui. ”
O homem parte, espantado por ter sua entrada recusada depois de um caminho espiritual tão longo.
Um grande período se passa e ele se encontra novamente diante da porta de Deus; ele bate delicadamente.
Outra vez soam as palavras: “Quem está aí?”
O homem responde: “Vós, Senhor.”
A porta estava aberta.
“Você já estava no interior: o tempo todo você estava batendo do lado de dentro.”
RUMI
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Conhecido e reconhecido
A maior parte do tempo esse “ser” essencial não é conhecido nem reconhecido por nossa consciência racional comum, que passa sem enxergá-la: é que a essência está realmente próxima demais para ser experimentada por nossa personalidade condicionada.
E esse “ser essencial” é semelhante ao estado livre de um bebê: um ser não condicionado, ainda mergulhado num estado inconsciente e liberto do tempo e do espaço. Cada ser humano é convidado a redescobrir esse ser livre, mas precisa fazer isso agora mesmo, de maneira plenamente consciente. E a questão que surge agora é: “Como podemos resgatar essa criatura?”
A resposta é simples, mas nosso pensamento racional cristalizado não consegue compreendê-la: esse outro já está aqui, ele nunca foi embora! Ela é incompreensível porque essa condição enxerga a si mesma como realidade: sua própria realidade é livre do “eu”! Nesse momento, essa realidade relativa que é o “eu”, que se permitiu olhar a si mesma, é iluminada pelo ser interior verdadeiro, que penetra tudo.
Quando essa situação abala nossa fé na realidade de nossa autoimagem, cria-se então uma abertura pela qual podemos descobrir, com base nessa luz interior, o que na verdade não somos. Quando já não podemos fugir dessa questão existencial referente à nossa identidade, chega o momento de sair em busca da resposta. De qualquer modo, as sugestões dos outros a nosso respeito também podem ajudar a montarmos uma imagem mental mais ampla de nossa natureza e de nosso ser interior. Contudo, fica claro que um auxílio exterior não deve se converter em nenhum tipo de autoridade, pois isso só serviria para nos desviar de nossa essência interior, de nosso mestre interior.
Mesmo que esse ser interior não seja encontrado, vai se formando um foco, um núcleo da alma, uma consciência-alma que animará nossa personalidade. Mais ou menos da mesma maneira, também se forma um foco, um campo de energia, quando diversas pessoas se abrem com base em seu interior. Em tal campo de energia, a vibração interior pode operar de maneira mais intensa com nossa própria alma.
Responsabilidade evidente
A Alma é um brilho intenso, uma luz que se inflama entre o ser e a personalidade e que vivifica a pessoa. Ela é vida e pode se expressar livremente na personalidade – ela anima a pessoa. A Alma carrega uma responsabilidade natural.
Poderíamos agora concluir que, se permitirmos uma abertura, o ânimo interior pode se consolidar ainda mais e nos preparar para a libertação. Contudo, não é o exterior, mas sim o interior que torna isso possível. E, ao mesmo tempo, não é uma libertação para o ego, mas uma libertação do ego!
Livre-arbítrio
Assim, a questão de saber se somos autônomos e se temos livre-arbítrio para escolher poderia ser respondida tanto afirmativa como negativamente.
Claro que, na relatividade, temos a liberdade de agir como queremos, mas em que medida essa relatividade é livre, uma vez que está ligada a tudo o que a ela se vincula? A escolha se faz sempre com base na consciência racional, nas ideias, conceitos e condicionamentos.
Ser autêntico é, ao contrário, ser totalmente livre e desvinculado, sem variação; apesar de bastante paradoxal, é uma renovação incessante – ser cada vez mais novo.
É por isso que somente a consciência-alma não condicionada pode perceber livremente o que é, o que se passa, e realmente animar a pessoa. Sem o olhar perturbado da pessoa conectada à percepção sensorial dos reflexos da vida, a consciência pura vê tudo o que acontece. Como personalidades, o que podemos fazer é “ser o que a expressão da vida é neste instante” e reconhecer isso em profundidade. Mesmo que não possamos influenciar essa expressão, nós somos essa expressão de vida. A pessoa continua ativa porque não pode fazer de outra forma, mesmo quando não tem nada para fazer. Claro que podemos ver como a personalidade tocada, afastada do eu e de sua lógica relativa, segue o impulso da consciência pura, que é “do ser imediato e atemporal”. Esse impulso provoca um processo de transformação na relatividade.
O processo de transformação da personalidade relativa é bastante real e não pode ser contestado em nenhuma situação; contudo, sob a perspectiva do absoluto, ela é como uma ilusão. A particularidade nesse caso é que o absoluto incognoscível se exprime na matéria pela vivificação de uma nova personalidade.
Portanto, existe uma verdadeira liberdade, mas ela não diz respeito à pessoa condicionada.
Assim, o problema da vontade livre diz respeito somente às funções da pessoa condicionada, pois somos sempre livres do ponto de vista interior. A vontade se manifesta como “vida em si-mesma”, em liberdade e amor incondicionais.
É isso que somos como aparição da consciência-alma verdadeira e autônoma. O que vai mais além é o espírito, o ser puro daquilo que é uma aparição de algo que poderíamos designar pela expressão “não ser”, porque é a fonte silenciosa incognoscível de todo ser.
É nosso ser absoluto.
É por isso que a autonomia e a liberdade não pertencem à pessoa, pois elas são idênticas ao Todo Único – e esse Todo Único é o que somos, na verdade. ◊
Nossas ideias a respeito de quem somos agora e eventualmente sobre quem somosdepois da morte não se coadunam
Pentagrama no 2 / 2017