CONTRIBUIÇÃO AO SIMPÓSIO SAINT FÉLIX: DICK VAN NIEKERK
A COMPREENSÃO DESSA FRASE-CHAVE DO “PAI NOSSO”
ENTRE BOGOMILOS E CÁTAROS
Quando, em junho de 2006, fui a Paris para entrevistar a cineasta búlgara Maria Koleva em seu cinema particular do Boulevard Saint-Michel, ela acabara de gravar três magníficos filmes sobre os bogomilos. Ela os apresentava com o título: “Oitocentos anos depois, os bogomilos estão de volta a Paris”. Maria Koleva ficou surpresa ao ver que um holandês desconhecido pegou o trem rápido – TGV – até Paris para ver um filme sobre os bogomilos búlgaros e para fazer uma entrevista com ela, que é filha de Nedialka Karalieva, autora de uma célebre montagem de áudio sobre os bogomilos, divulgada nas ondas da rádio estatal búlgara todo domingo durante os sombrios anos sessenta.
Essa mulher calorosa e acolhedora que é Maria Koleva, com setenta e sete anos, quase não tem paciência para ouvir minhas perguntas e entra diretamente no assunto, falando sobre os bogomilos com tom quase acadêmico: “Eram cidadãos de Cristo, amados por Deus. Não tinham nenhuma necessidade de uma Igreja obcecada por regras e vantagens pessoais”.
Ela descreve esses cidadãos como um movimento gnóstico independente, um grupo de verdadeiros cristãos que tinha conseguido penetrar em todas as camadas da sociedade búlgara, e, mais tarde, da comunidade bizantina. Um movimento que também deu o exemplo em matéria de liberdade e de responsabilidade pessoal, como a liberdade de pensar e a equivalência absoluta entre homens e mulheres.
Apesar de pouquíssimas coisas terem subsistido dessa época dos bogomilos (entre 950 e 1450), minha interlocutora acentuou o fato de que eles sempre estarão vivos na consciência coletiva dos búlgaros, e que os conceitos bogomilos, entre outros, foram muito desenvolvidos na área da saúde e da justiça dos búlgaros. O que mais havia impressionado Maria Koleva era a retidão demonstrada pelos “Perfeitos” entre os bogomilos: seu comportamento impecável, que os tornava respeitados em toda parte: “Eles demonstravam diariamente que a verdadeira Igreja de Cristo tem morada no coração humano”.
Segundo Maria Koleva, os bogomilos alcançaram seu coroamento com seu prolongamento na história do catarismo, que desenvolveu, talvez mais sutilmente ainda, seu modo de pensar: “Eram dois focos de uma só chama! Não por acaso os bogomilos são chamados de ‘cátaros do Oriente’.”
Quando me despedi de minha anfitriã, a senhora Koleva fez uma predição solene: “Escute, caro amigo, dentro de dez anos as pessoas vão descobrir que a Europa – a Europa espiritualmente livre – começou em 1167 na cidadezinha de Saint-Félix-Lauragais (que hoje pertence ao departamento da Haute-Garonne, na Occitânia, sul da França). Foi lá que aconteceu o primeiro impulso de liberdade e de independência para o ser humano, que não deveria mais ser visto como uma célula tediosa e sem vontade em uma sociedade medieval, feudal e repressiva. Foi preciso correr muito sangue e lágrimas para manter viva essa mensagem, mas, de qualquer forma, Saint-Félix é o berço da Europa!”
É por isso que, caros ouvintes, neste dia excepcional, é uma grande honra, para mim, poder falar nesta oportunidade, neste simpósio, quase no mesmo local onde o papa Nicetas falou com os dirigentes cátaros sobre a imensa influência que os bogomilos tiveram sobre a cultura espiritual europeia. Não esperem ouvir um discurso científico, pois não sou cientista. A única razão pela qual tive coragem de estar aqui, diante de vocês, é o Amor: o Amor que tenho há muitos anos pelos bogomilos, pela Bulgária e pelos cátaros.
Orígenes: “Pede o que é celeste e o que é terrestre te será dado em acréscimo”
Ele é uma das figuras mais importantes da história europeia. No entanto, pouco sabemos a respeito dele. Sobre Nicetas ou Niquinta (seu nome em Latim) sempre se estendeu um véu.
Circulam muitas lendas a respeito de suas origens. Dizem, principalmente, que ele teria nascido em Preslav, antiga capital da Bulgária. Eu não gostaria de aumentar a confusão sobre sua identidade, mas, por outro lado, tenho algumas perguntas a fazer a respeito desse assunto. Sabe-se que ele vinha de Constantinopla, mas isso não significa que ele era dessa cidade, pois o nome Constantinopla designava, na época, o Império Bizantino inteiro.
Mas o que importa, à parte suas origens, é que ele devia ser falante de língua grega. Então, teria sido Nicetas um representante da Igreja Bogomila da cidade de Constantinopla? É bem possível que não, pois seria quase impensável que um dignitário que falasse grego e viesse do Oriente empregasse, no Ocidente, a língua latina, que é a da Carta do Sínodo de Saint-Félix. Afinal, ele não era um representante da Segunda Igreja Bogomila, ou seja, a Igreja Cátara de Constantinopla, que falava latim? Há raríssimas fontes de informações concretas sobre essa comunidade dissidente dos falantes de latim.
Rainier Sacconi, célebre perseguidor de hereges, mencionou que, por volta de 1250, essa Igreja latina contava com apenas 50 membros, ou seria mais conveniente dizer cinquenta bonshommes. À primeira vista não é muito… mas a entrevista sobre o catarismo me fez ver que o número mencionado deve geralmente ser multiplicado por cem para podermos estimar o número total dos membros da comunidade, o que daria um total de pelo menos 5.000 almas, um número bem maior e mais verossímil.
É incontestável que, no século 12, Bizâncio abriu um espaço para a Igreja Ocidental do tipo cátaro. Constantinopla era uma sociedade composta por múltiplas etnias – portanto, cheia de variedades – onde mais de 60.000 imigrantes ocidentais estavam estabelecidos, não muito além da região do Chifre de Ouro (estuário que divide o lado europeu da cidade de Istambul – atualmente Turquia – com o Mar de Mármara, local colonizado por gregos). Eram, em sua maioria, italianos, venezianos. Mas também havia nórdicos, alemães, ingleses e franceses.
Os romaioi (cidadãos falantes de grego em Bizâncio) chamavam-nos de latinoi, ou seja, latinos. Estes últimos eram, sobretudo, cientistas pesquisadores, diplomatas, padres, mercadores, artistas e peregrinos. Todos esses estrangeiros chegavam a Bizâncio por uma famosa estrada romana chamada Via Egnatia, que passava às margens do lago Ohrid (na atual Macedônia). Os romanos chamavam essa cidade de Lychnidos, “Cidade da Luz”: a primeira universidade da Europa foi ali estabelecida e as pessoas podiam discutir abertamente a respeito de religião e também de seus aspectos dualistas. Isso explica o fato de que Ohrid mereceu o apelido de Jerusalém do Oriente.
Esses viajantes eram bem-vindos a Bizâncio, onde se demoravam mais, ou pelo menos um pouco mais. O imperador bizantino Manuel I Comneno (1118-1180), por exemplo, conduziu uma política de reaproximação com o Ocidente – sobretudo com os italianos, que, sempre que fosse apropriado, poderiam prestar grande serviço para defender o império. Por isso, o imperador também facilitava para eles a passagem nessa estrada. É provável que as primeiras atividades de proselitismo bogomilo-cátaro no Ocidente tenham sido conduzidas pelos membros da Igreja dissidente dos latinos sobre os quais falamos anteriormente. Como estes haviam residido algum tempo em Bizâncio, não teriam tido dificuldade linguística para transmitir sua mensagem de Luz quando retornaram à Europa Ocidental.
A comunicação em Constantinopla era primordial, pois oferecia a possibilidade de um contato espontâneo entre a população poliglota. Podemos muito bem supor que o bogomilismo adquiriu uma coloração ocidental nessa cidade, e que os textos foram traduzidos do grego para o latim. Foi aí, no império de Manuel I Comneno, que o catarismo fincou raízes entre os bogomilos e que seus mensageiros se formaram na arte de propagar seus ensinamentos rumo a Oeste. Os ocidentais trouxeram a verdadeira fé a outros ocidentais.
Realmente, seria muito plausível que um representante dessa Igreja de “missionários”, como Nicetas, viesse a Saint-Félix com sua mensagem de Amor e de Paz para dar seus conselhos sobre a estrutura federal das comunidades cátaras do sul da França.
Eu me inclino profundamente diante de Nicetas, por ter tomado a iniciativa de atravessar os Alpes com o objetivo de dar o consolamentum a toda essa gente da Occitânia, que sentia intenso anseio de salvação e tinha suportado pesadas provações. Eu também agradeço a Nicetas por ter, há 800 anos, estabelecido o laço entre o Oriente e o Ocidente e por ter ligado, com o fio de ouro da Gnosis, o bogomilismo e o catarismo.
Os bogomilos fizeram até uma comparação irônica entre os verdadeiros cristãos: que eles construíam sua casa sobre a rocha do “Pai Nosso”, enquanto a Igreja ortodoxa era construída sobre a areia de enorme quantidade de preces disparatadas. Para eles, o “Pai Nosso” era uma prece específica, sagrada – é o que indica um dos raros textos que restaram deles e chegaram até nós: o Interrogatio Johanni, onde é dito: “Os sete céus são habitados pelos anjos, cuja tarefa é a de glorificar o Pai mediante o ‘Pai Nosso’.”
Portanto, podemos constatar que devemos aos bogomilos o mérito de terem sido os primeiros a utilizar o “Pai Nosso” como fundamento exclusivo de seus ensinamentos. Foi assim que eles enfrentaram a Igreja. Por essa única razão, foram considerados hereges pelos cronistas eclesiásticos de sua época, e, por isso, foram perseguidos.
Jamais a palavra epiousion havia sido utilizada em grego antes, a não ser na Bíblia. Trata-se de um hapax legomenon, uma palavra inventada; hoje, diríamos que seria um “neologismo”. O primeiro a fazer essa observação foi Orígenes, um padre da Igreja que era muito perspicaz (185-254). Quem inventa uma palavra nova quer alertar seus leitores, com maior ou menor intensidade, para lhes dizer: agora, prestem atenção, trata-se de algo que não é comum! Essa palavra, epiousion, é formada pela preposição epi e pelo substantivo ousia. Ora, a preposição epi significa “sobre” ou “além disso”. Quanto a ousia… precisamos pedir auxílio ao talento de um tradutor da Bíblia chamado Hieronymus ou Jerônimo (347-420). Diante dessa palavra excepcional, ele inventa, por sua vez, um neologismo latino para servir-lhe de tradução: supersubstantialem. É assim que encontramos a frase seguinte entre os bogomilos (e, mais tarde, entre os cátaros): Panem nostrum supersubstantialem da nobis hodie.
Foi seguindo esse caminho que Jerônimo traduziu ousia por substantia: aquilo que está oculto sob a superfície, a profundidade sutil de uma coisa; aquilo que a faz ser o que é: “sua substância”. Assim, nos aproximamos ainda um pouco da definição com a célebre expressão do filósofo François Rabelais (1483-1553): substantifique moelle, ou seja, a quintessência, o núcleo substancial, a substância primordial ou original. Resumindo: os bogomilos faziam sua prece para a quintessência de suas vidas. Catharose de Petri, grã-mestra do Lectorium Rosicrucianum, mais tarde chamou a quintessência de “o quinto elemento fundamental”, ou seja, o acesso ao campo de vida das almas imortais.
Pelo uso do termo epiousion/supersubstantialem, os bogomilos tiveram muita influência. John Wicliffe (1330-1384), precursor da Reforma, retomou a expressão substância/essência: oure breed ouer othir substaunce, assim como o formidável pioneiro tcheco da Reforma, Johannes Hus (1370-1415), que falou do “pão dos sagrados ensinamentos da palavra de Deus” (chleb svatého naučenie slova božieho).
Essas duas figuras tiveram profunda influência sobre a Reforma – voluntariamente ou não.
Neste ano, ou seja, cinco séculos depois, centenas de milhares de crentes na Europa comemoram a vida de Martinho Lutero e os 500 anos da Reforma (1517-2017). Na Alemanha, particularmente, grandes manifestações foram regularmente organizadas. Quanto a nós, nesta ocasião especial, aqui em Saint-Félix de Lauragais, nós – vocês e eu – respondemos a isso festejando 850 anos de reforma interior!
“Alimenta nossas almas com teu pão celeste e fortifica-nos com tua forçaa fim de que possamos progredir em nossa senda espiritual”
O extrato seguinte, fragmento do “Ritual de Dublin”, nos faz alcançar o essencial de nossa exposição: “Cristo nos ensina também a pedir outro pão [o pão suprassubstancial – epiousion], ou seja, o Amor, o Amor mediante o qual todas as substâncias mantêm-se e são conectadas. Esse amor é chamado de suprassubstancial porque ultrapassa todas as substâncias, tais como a misericórdia, o espírito, a vida, a alma, o coração, o corpo, a fé, a esperança. A força de amor mantém unidas todas as substâncias e as interliga.”
Com esse esclarecimento cátaro que nos aquece o coração, podemos deduzir, sem qualquer contestação, que ele também é inspirado por importantes pensadores gnósticos do cristianismo original, como Valentino, Orígenes – que já foi citado – e o teólogo místico Pseudo-Dionísio, o Areopagita.
Com o auxílio da prece que Jesus nos ensinou, os cátaros nos fazem compreender claramente que essa palavrinha tão notável e excepcional epiousion (supersubstantialem) poderia ser o termo mais importante do Novo Testamento. Ela é o motor propulsor silencioso do cristianismo interior não-dogmático, onde não existe a intercessão de instituições ou padres. Essa palavra é a quintessência, o único alimento indispensável ao ser humano em seu desenvolvimento espiritual a fim de poder reencontrar o divino nele mesmo e receber o que vem do mundo divino: a energia necessária para permitir que ele participe da Gnosis de maneira duradoura.
2a É chocante constatarmos quantas pessoas são enganadas por esse enunciado tradicional do quarto pedido do “Pai Nosso”, dando a ele uma interpretação somente literal, material: nosso pão cotidiano. Jan van Rijckenborgh, grão-mestre do Lectorium Rosicrucianum, advertia seus ouvintes com certa ironia: “Façam suas preces pedindo apenas o sustento espiritual de suas almas. Também não imaginem que, pela prece, alguém irá lhe trazer, o mais rápido possível, um auxílio confiável para obter o alimento necessário para encher sua despensa”.
3a E por que a igreja institucional não queria admitir essa palavra, epiousion/substantialem? Em minha opinião, tratava-se de uma divergência de doutrinas, tomadas de posição. Mas, principalmente, concepções e pontos de vista inconciliáveis sobre Deus e o ser humano. De um lado, temos um homem livre, capaz de se perfazer e, assim, alcançar sua perfeição. Ele é capaz de desenvolver-se no caminho espiritual com a finalidade de participar da Gnosis, da qual deseja dar testemunho. Uma pessoa como essa não tem necessidade de padres nem de instituições, somente de companheiros de caminho.
No sentido oposto estão os teólogos das igrejas institucionais, para quem Deus “desceu” a fim de salvar um ser humano passivo que vive no pecado.
Não estaríamos tropeçando, aqui, na diferença essencial entre duas espécies de cristianismos – um, exotérico e outro, esotérico? Não seria exatamente esse cristianismo livre, interior – que perfurou e atravessou todo o dogmatismo opressor – aquele que Nicetas veio trazer a Saint-Félix? Esse cristianismo luminoso, cheio de vida, ao qual os cátaros iriam dar forma com tanta força de imaginação criativa?!
Sim! Nicetas nos mostrou o caminho da Luz e do Amor, o caminho da reforma interior, da liberação e da transformação pela autodeterminação. Ele induziu em nós uma inspiração ilimitada, voltada para uma nova era!
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Pentagrama no 4 / 2017