A rosa da razão

 

Em nossa época também podemos sentir uma grande necessidade de compreensão que poderia nos reconciliar com a realidade. O filósofo Hegel afirma que a realidade é “dialética e paradoxal”. Para ele, essa reconciliação com a realidade precisa acontecer – caso contrário, assim diz ele, não nos restaria nada mais do que uma sede insaciada de Deus. E é assim que Hegel descreve o modo pelo qual a Razão sintoniza com a Rosa das Rosas, que toma seu lugar na cruz desse presente vivo.

Quando Georg Wilhelm Friedrich Hegel fez essa afirmação há duzentos anos, ele partia da ideia de que a Razão e a Rosa poderiam ser colocadas no mesmo nível, por causa de certos derivados da palavra no grego. Foi principalmente a partir de Hegel que a realidade foi qualificada de “dialética” – ou seja, feita de oposições. Toda tese pede uma antítese e em seguida outra antítese da qual vai se formar uma nova unidade. De acordo com Hegel, a realidade no tempo põe-se em movimento seguindo uma espiral sempre formada por novas ideias, e desse modo a dinâmica continua, incessantemente. Assim, não há nenhuma unidade estática dos contrários.

Segundo a Rosacruz Áurea, a dialética significa que tudo o que vemos não está, de modo algum, baseado na estabilidade, mas, na verdade, está evoluindo continuamente em direção de seu contrário.
O mundo das aparências – que, para muitos, constitui a realidade – não é nem permanente nem durável. Por isso algumas pessoas dizem que vivemos em um mundo que nos parece ser algo constante, porém que mais tarde já não o é.
O pano de fundo desse pensamento já é secular. Na Índia, as pessoas conhecem o conceito de Maya. Na Grécia, com Heráclito – que inspirou Hegel – há o célebre Pantha Rei: todas as coisas fluem (tudo passa).

A noção de fugacidade e de aparência é ainda mais bem apresentada em uma imagem muito forte, também proposta por Heráclito, quando ele diz que “não podemos atravessar o mesmo rio duas vezes”. Mas toda essa aparência, essa abundância de bens, o dito “mundo dialético” suscetível de ser alcançado pela tecnologia em um nível elevado de perfeição… nada disso nos traz serenidade, porque toda ancoragem, qualquer que seja, nos prende à roda da temporalidade e, portanto, à roda da morte.

Aspirando à perfeição
Assim, essa abundância de bens exteriores nos atormenta, pois trazemos em nós a lembrança de uma perfeição real, em um mundo onde a dialética era de tal forma que o movimento dos contrários permitia um repouso absoluto, ou melhor, de um ponto de vista mais elevado, um estado sem fricção. Por isso surgiu em nós um poderoso desejo interior de compreender a realidade e essa inquietude e essa ausência de serenidade que desde sempre foram os princípios fundamentais do florescimento da Rosa, da revelação do ser humano verdadeiro – aquele que vive da Razão.

Poderíamos nos indagar se na Grécia antiga, na antiga China ou na Índia realmente reinava a serenidade.
É claro que na Antiguidade as pessoas se ocupavam proverbialmente de modo clássico e pregava-se a abnegação e o wu-wei – o agir sem agir, o “deixar para lá” – mas, aos olhos das normas ocidentais, um tipo de abordagem como essa era totalmente incompreensível. A prática de vida de Pitágoras, explicada nos Versos Áureos, é a que mais se aproxima de nossa mentalidade ocidental.

Principalmente aquela sua regra que dizia: “Não façam jamais algo que não compreendem”. O essencial para a tranquilidade do espírito em nossa tomada de consciência da temporalidade dialética é que nossa alma não fique pesada como chumbo, que ela não sinta com isso uma crise de identidade a ponto de nos sentirmos estrangeiros, caóticos, fragmentados e cheios de pânico, sendo somente capazes de manter nosso equilíbrio à custa de tranquilizantes.
O necessário é uma alma adulta, que traga em si mesma os insights com toda a serenidade e que não se apoie somente nas outras pessoas.

O problema vem do fato de que tudo é efêmero, literalmente que “nada é novo”. Grandes espiritualistas da Idade Média, como J. van Ruusbroek e Thomas van Kempen, indicaram magníficas direções místicas de boa fé (bonafide), vistas com base em profunda crença religiosa, o que permitia às pessoas suportarem a temporalidade graças a uma consciência mística.

Ruusbroek chegou mesmo a prever o ponto culminante de um processo espiritual. Isso se reflete em sua maravilhosa obra As núpcias espirituais, que são um prelúdio de As Núpcias alquímicas de Cristão Rosa-Cruz.

Mas a partir do Renascimento, “a lança foi visivelmente quebrada” no que diz respeito a uma base de alma unicamente mística. O anseio interior a ser compreendido tornou-se cada vez mais forte e as pessoas começaram a sentir cada vez mais o caráter limitado dos insights místicos muito restritos.

Naquela época, as pessoas tinham de lutar muito, principalmente contra as ideias esclerosadas de uma consciência encapsulada. O novo conhecimento e a nova autoconsciência eram especialmente perigosos e era preferível que as pessoas não dissessem abertamente o que estavam se esforçando para compreender, incitadas pelo impulso interior. Galileu e Giordano Bruno são exemplos que mostram consequências trágicas.

A Rosa Púrpura de Giordano Bruno
No entanto, com Giordano Bruno, vemos a Rosa em relação com uma consciência mística despertada. Em seu manuscrito A expulsão da fera triunfante, ele descreve a viagem do ser humano, considerada desde sua existência terrestre até seu verdadeiro destino, utilizando a bela imagem a seguir.

Ele compara o ser humano a um cisne que sente, em seu ser profundo, a dor e a aflição de seu aprisionamento na existência terrestre.

Esse sofrimento é o aguilhão do arrependimento, e esse arrependimento podemos chamar de virtude. O arrependimento é semelhante a um cisne. Ele não ousa elevar-se, pois a consciência da humilhação o mantém prisioneiro. É por isso que ele se desvia da terra e busca a água. A água representa as lágrimas derramadas por causa do remorso. E, nessa água, o cisne tenta purificar-se para tornar-se semelhante à branca candura virginal. A alma – ou o cisne – olha para dentro de si mesma. Ela lembra-se de sua Pátria e começa, primeiro hesitantemente, a se distanciar de todo mal. Sua plumagem começa a crescer, ela se eleva, aquece-se ao Sol e inflama-se no Amor até chegar ao divino. Assim ela se torna etérica e se metamorfoseia para se transformar em seu próprio ser original. Mesmo que a errância e o pecado sejam a causa do arrependimento, chamarei a alma, no presente, de Rosa Púrpura, aquela que cresce entre espinhos afiados. Dou-lhe o nome de Centelha de Luz que, de um sílex de bronze cunhado, eleva-se até o Sol, com o qual ela é intimamente aparentada.
Giordano Bruno

A Cruz com Rosas é o destino do homem. É a vida opulenta, nossa oferenda a Deus.
Não somente as rosas, não somente a cruz: o amor os reúne fielmente *

Compreensão interior e exterior
A fim de satisfazer sua necessidade de compreensão interior, os rosa-cruzes clássicos preferiram enunciar seus axiomas irrefutáveis e demonstrar os tesouros espirituais em seus Manifestos, de tal modo que eles continuassem ocultos ao olhar profano – portanto, ao ser humano que sente apenas um impulso exterior para compreender.

 

Compreender a Razão como a Rosa que está na cruz do presente e, então, regozijar-se nela.

Depois que René Descartes conseguiu colocar de volta a ideia fundamental com base nessa Razão, Espinoza pôde oferecer uma interpretação real como solução à problemática moderna humana, a fim de que se fizesse justiça a todos os insights espirituais: de um ponto de vista místico, clássico, moral, racional e religioso.

Juntos, esses insights formam uma porta aberta para o fortalecimento e renovação da alma, indispensáveis para o verdadeiro processo de desenvolvimento rumo ao estado de ser humano-divino. É assim que ressoa o chamado.

Construam seu ser e sigam o processo do conhecimento divino. Assim, vencerão suas dificuldades, compreendendo como a natureza original opera. Isso é possível, pois a natureza divina pode ligar-se ao ser humano através do pensamento, uma vez que a lógica não é incompatível com ela, de modo algum! Na verdade, é exatamente por intermédio da lógica que a natureza divina dá continuidade a seu trabalho. Essa interpretação de Espinoza pode ser compreendida com base na perspectiva do século 17, mas no século 21 ela é mais relevante do que nunca; afinal, a lógica (que não é construída na natureza divina) está fechada e, por assim dizer, está “mordendo sua própria cauda”.

Em sua célebre obra A dialética da razão, os sociólogos Adorno e Hokheimer até falam a respeito disso como a destruição da Razão!

Então, como se inicia o caminho do conhecimento que torna possível a intuição divina?

A Rosa de Espinoza é o ponto central da Razão
Na famosa introdução da Ética de Espinoza, encontramos ainda mais: um exemplo espantoso da noção mais compreensível dos relacionamentos no mundo.

Depois que a experiência me ensinou que tudo o que acontecia na vida cotidiana era vazio e inútil, e que percebi que tudo o que eu temia e as razões de meus medos não continham nada de bom nem de mau, […] decidi finalmente pesquisar se existia também algo de verdadeiro de que poderíamos tomar parte e por meio do qual a alma poderia ser profundamente tocada – e isso aconteceria somente quando rejeitássemos todo o resto.

A partir da percepção da vaidade e da futilidade da vida comum, a alma sai em busca e deseja sua realização por meio do verdadeiro Bem – e o encontra na Razão. Vivendo de acordo com os insights da Razão (= do Espírito), a alma cresce até alcançar uma exigência indispensável, até a mais elevada forma de conhecimento: o Amor focado em Deus, na intuição divina. Nesse Amor a Deus, a Rosa do conhecimento floresce em meio aos espinhos da vida comum. O nome “Espinoza” remete aos espinhos dessa Rosa. Poderíamos até dizer que o lema de Espinoza Caute (seja prudente) nos convida a tomar consciência dessa realidade e da presença desses espinhos.

Quando a Rosa do Amor por Deus se abre, a alma já está forte o bastante para enfrentar a alienação, a perda de identidade, mas também a irracionalidade, pois a Razão pura irradia da alma que se rejubila com ela. Jan van Rijckenborgh nos faz notar, em seu comentário sobre o Nuctemeron de Apolônio de Tiana, que é nessas qualidades de alma que podemos falar de um “casamento” dos pares opostos da dialética: “bem e mal, luz e sombra, amor e ódio.

Quando são testados, esses pares opostos são equilibrados pela alma. É assim que a alma – e somente ela – pode vencer a dialética”. Espinoza não vê essa alma como uma força objetiva, impessoal e fria, mas como um ser obviamente empático e racional, que permanece no mundo graças à sua bondade. Em sua Ética, ele faz uma observação a respeito de sua tese 59, terceira parte: “Quanto à magnanimidade, quero falar sobre esse desejo em virtude do qual as pessoas – e somente seguindo as ordens da Razão – se esforçam para ajudar umas às outras e de se ligarem a elas pela amizade.

E, vista com base na perspectiva da natureza divina, a alma se rejubila em sua sabedoria, amor e na força da revelação do Bem Absoluto, que se encontra na Razão. A natureza divina revela-se porque a alma se revela em seu amor, conduzida pela Razão. Deus é tudo: a substância essencial, o Único, Verdadeiro e Ilimitado – uma existência que de nenhuma maneira poderia ser rejeitada ou negada, pois isso faria do pensador e de seu pensamento algo inexistente. A informação de que Deus é Único e o Todo faz desaparecer para sempre toda e qualquer imagem habitual de Deus sentado em um trono como uma projeção de qualidades humanas, como criador e juiz sobre-humano.

A Razão torna possível, de modo lógico, a difusão dos pensamentos divinos. Na análise feita por J. van Rijckenborgh relativa a um dos manuscritos herméticos, surge a mesma ordem de ideias de Espinoza quanto ao verdadeiro caminho do conhecimento:

“Quando em nosso interior os pensamentos nascidos de Deus começam a despertar, então podemos instantaneamente ouvir a voz da alma – ou seja, em linguagem mística, a Voz de Deus”.

Portanto, há uma fase, na consciência dialética, durante a qual o novo pensar pode ser alimentado pelas forças unificadoras da natureza original.

Espinoza é um dos poucos pensadores ocidentais que identificou e testou esse critério. Para o novo pensar, não há Bem e Mal na natureza, mas unicamente a inexorabilidade e a beleza – pelo menos enquanto a nova Razão respirar na natureza divina ou fundamental.

Para muitos, a seguinte afirmação de Espinoza “O homem tocado pela Razão que está no centro, jamais sentirá outra coisa a não ser emoções de alegria e intenso desejo”, oferece um ponto de apoio racional místico que podemos testar, a todo momento, principalmente quando adicionamos em seguida a tese da quarta parte: “Quem se deixa levar pelo medo e que por isso faz o bem por medo do mal não é conduzido pela Razão”.

Espinoza esclarece esta última tese na quinta parte, no decorrer da qual ele declara que “os confessores e aqueles que creem num além como recompensa por sua piedade, não são conduzidos pela Razão.”

A Razão torna possível a difusão dos pensamentos divinos

Eternidade
Trata-se de compreender a Razão enquanto “Rosa na cruz do presente”. Aí está o verdadeiro pensamento gnóstico que ressoou sublimemente no século 17 fundamentado nos documentos herméticos.

 

A eternidade somente pode ser comprovada pela Razão Perfeita, pela Razão que está no centro – e somente no agora. Espinoza indica que a eternidade não tem qualquer relação com o tempo (principalmente quando ele verifica que o Espírito não pode ser definido em função do tempo nem ser explicado pela duração).

No entanto, ele também diz que o espírito humano possui um conhecimento adequado do ser eterno e ilimitado de Deus. É aí que se encontra nossa possibilidade de chegar mais perto dessa eternidade. Claro, Espinoza considera nossa personalidade um modo de vida temporal e efêmero, que depende de nossas impressões corporais e que morre com o corpo. A síntese nos ensina, além disso, que, depois da morte, o espírito humano não se reduz a nada ao mesmo tempo que o corpo físico, mas que tudo o que é eterno permanece.

Consequentemente, isso significa que todo pensamento, toda representação espaço-temporal que se distancia do presente não terá a celeridade que a Razão possui na eternidade em Deus, no espaço vazio do Verdadeiro Ser.

O fato de Espinoza rejeitar a ideia de um céu considerado recompensa de uma corajosa existência burguesa e seu requisitório para a eternidade no presente do espírito humano, quase nos faz ouvir o mesmo eco das palavras do gnóstico Valentino, que já no início de nossa era apontava:

“Aqueles que dizem que
morremos primeiro e
em seguida ressuscitamos
enganam-se. Se não recebermos
a ressurreição durante a vida,
não a receberemos também
depois da morte”.

Quanto à falência do “pensamento-eu” separado, Espinoza nos dá uma resposta em sua Ética, que é transmitida pela Rosacruz Áurea no processo gnóstico do desenvolvimento de uma consciência moral-racional rumo à intuição pura. Ou seja: um processo de desenvolvimento baseado no “pensar com o coração”, a consciência racional, que leva à ação da verdade imediata no próprio ser humano – que é a verdadeira intuição. Trata-se de uma continuidade de vida com o Cristo; trata-se da Rosa na cruz do presente.

Espinoza ressalta que “quanto à depuração do espírito” os conceitos de bem e mal não podem ser senão subjetivos. Poderíamos dizer que a árvore do conhecimento do bem e do mal até traz o insight, mas não nos traz automaticamente a vida da natureza divina. Espinoza deseja preencher a alma com o mais elevado bem.

Sua Ética deve ser considerada um modo de uso hermético para a alma que está a caminho do conhecimento divino eterno, a sabedoria e o amor. É por causa desse tom tão espinoziano que, no século 20, a Rosacruz Áurea sentiu-se na obrigação de apresentar tudo isso resumidamente para o ser humano, com base no esoterismo e no exoterismo da época atual, mostrando que o necessário para tanto é uma nova alma e um novo poder de pensamento. O nível de aprofundamento esotérico tem dupla função: permitir, em primeiro lugar, que a pessoa tome consciência de que o conhecimento sem a sabedoria e o amor é puro engano; e, em segundo lugar, que a Gnosis (que é o verdadeiro conhecimento ligado à razão) precisa de um instrumento, de um receptáculo, para aí afluir, a fim de poder expressar o amor de Deus e realizar o pensamento.

J. van Rijckenborgh e Catharose de Petri afirmaram, durante suas conferências e em inúmeras publicações, que há uma nova Ética, uma síntese criadora que torna possível o desenvolvimento desse novo instrumento – a veste da alma –, que se torna um guia para um novo poder de pensamento.

Uma Ética como essa concorda bastante com a Ética de Espinoza. Não há projeções rumo ao Além, mas a tônica é dada ao momento atual de trabalho – o presente, que é o ponto de contato no meio absoluto, a alegria e a liberdade, em unidade com a natureza original.

Alegria e desejo
Contrariamente ao pensamento de Hegel, nem a filosofia nem a contemplação infinita da dialética proporcionam a compreensão e a alegria. De acordo com a Ética, isso somente é possível quando desejamos o bem absoluto. Esse tipo de sede desaparecerá graças à consciência moral-racional. A moral dessa razão reside no “pensar com o coração”. É na paz desse tipo de alma que se mostra o poder da Razão e é somente aí que se encontra a liberdade.

No livro As Núpcias alquímicas de Christian Rosenkreuz, e mais especialmente em sua análise esotérica, estão descritos o desenvolvimento da consciência e as mudanças que se operam na cabeça por meio da ação do Espírito a fim de que a compreensão, a Razão, finalmente transforme todo o nosso ser, quebrantando-o mesmo em seu estado de “eu”.

O que resta “são apenas emoções de alegria e desejo”. A luz de Deus vai revelar-se, então, a partir do mistério, onde o Espírito e a alma puderam se reunir em:
– Uma vida de ações manifestamente libertadoras, na serviçabilidade absoluta;
– Um novo estado de vida;
– E, em terceiro lugar, o ponto culminante do corpo e da alma, a nova Razão, o novo pensar, que é o estado humano-divino, a veste áurea das núpcias.

Essa é a verdadeira iluminação. Então compreendemos “a Rosa na cruz do presente”. ◊

* De Génestet, in: S. Griffioen, A Rosa e a Cruz; (depois disso o pensamento de Hegel apreciou a finitude)

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Pentagrama no 2 / 2018

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